Estados alterados da natureza: Cristais líquidos e bolhas de sabão

Um globo formado por uma fina película iridescente de água saponosa cheia de ar que flutua na atmosfera: assim se define a bolha de sabão. A sua película, tão fina como um milésimo de um fio de cabelo, não é senão água encurralada entre duas camadas de moléculas tensoactivas, ou seja, moléculas com pontas hidrofílicas, atraídas pela camada de água e que mantêm assim a bolha intacta, mas com caudas hidrofóbicas que, se agitadas, fazem a bolha explodir. Nela parecem reflectir-se as cores do arco-íris. Porém, esse fenómeno iridescente deve-se tão-somente a uma interferência entre os raios de luz que se reflectem sobre o exterior da película e os que se reflectem no interior da bolha. Essa estrutura tão frágil, mas tão sublime e aparentemente tão geometricamente perfeita sempre encantou tanto os mais ingénuos, as crianças, como os artistas, os poetas e os mais sábios. Uma insignificante maravilha do quotidiano que terá servido a elaboração de complexas teorias matemáticas, físicas e químicas. Pois que, na verdade, nela estão em jogo os três estados da matéria num equilíbrio extremamente frágil e efémero, como se por breves momentos nela se reflectisse todo o cosmos – superfície cosmodélica - antes de desaparecer repentinamente e assim cumprir a sua vocação evanescente. E não passa de uma bolha de sabão! Mas, o mistério deste fenómeno terá mesmo que ver com as qualidades químicas da solução saponosa, isto é, com o facto de no sabão dissolvido com água se formarem cristais líquidos liotrópicos.


Os cristais líquidos são estados da matéria que apresentam características dos líquidos e dos sólidos simultaneamente e são precisamente as suas qualidades anfifílicas – ao mesmo tempo hidrofílica e hidrofóbica – que permitem ao sabão dissolvido em água passar pela fase liotrópica liquido-cristalina. Os níveis de concentração das moléculas variam e a sua progressão dá-se por diversas fases de auto-organização. A possibilidade de observar, fotografar e filmar ao microscópio a evolução de fases dos cristais líquidos permitiu apreciar os efeitos luminescentes e multicolores produzidos pela interacção da luz.



Em 1978, o realizador de documentários científicos, Jean Painlevé, fez um filme a partir dos trabalhos do biólogo Yves Bouligand sobre a transição de fases de cristais líquidos termotrópicos. Segundo o autor, o filme servia para ilustrar “L’Antarctique”, a última obra musical do compositor francês François de Roubaix – e que escutávamos em fundo -, com as ondulações e transformações morfogenéticas dos cristais líquidos, dignas de um qualquer Liquid Light Show psicadélico dos anos 60. Com efeito, esta banda-sonora havia sido composta em meados dos anos 70 para um documentário do famoso Jacques-Yves Cousteau sobre a Antártida. No entanto, ela fora recusada e, depois da morte do compositor, recuperada por Jean Painlevé. O nome pouco conhecido de François de Roubaix esconde um talento musical de extraordinário valor, sobretudo, na composição de bandas sonoras, onde os instrumentos analógicos se concertam harmoniosa e organicamente com os sons electrónicos dos sintetizadores. Embora nunca tenham ouvido falar deste nome, é muito provável que muitos recordem ainda a melodia e as jocosas sequências electrónicas da série de animação Chapi-Chapo, onde duas crianças divertidas brincavam com sólidos geométricos e coloridos. Depois de escutarmos a música de Roubaix, utilizada em “Crystaux Liquides”, ouvimos ainda um excerto de Chapi-Chapo, para fechar com alguma nostalgia uma crónica que começou com meras bolhas de sabão.

Fumeux fume (Solage)

O fumador fuma através do fumo
Uma fumegante especulação.
Enquanto outros fumegam pela cabeça,
O fumador pelo fumo fuma,
Pois muito lhe agrada o fumo,
Enquanto se esfuma a sua intenção.
O fumador fuma através do fumo
Uma fumegante especulação.

Esta seria uma tradução possível e decerto, por isso, uma traição de um poema francês dos finais do século XIV, que chegou até hoje através do Codex de Chantilly, que recolhe uma série de composições musicais – baladas, rondeaux, virelais e motetos - da época da Ars Subtilior, onde se inclui este rondeau do compositor Solage, que escutamos já em fundo. O estilo complexo e refinado das composições, com um bizarro sistema de notação, fez desta arte “a mais subtil”, como o nome que mais tarde recebeu o indica e terá sido cultivada e escutada por uma elite letrada, nos meios urbanos de Paris e Avignon, na segunda metade do século XIV. Ainda hoje surpreende o elevado grau de sofisticação das composições e, particularmente nesta, de Solage, não deixam de soar bizarros e experimentais os maneirismos que a sua interpretação exige. Mas mais desconcertante é a letra que rivaliza, na sua estranheza, com as extravagâncias da música. Quem foi ou quem eram esses “fumeux” de que ela fala e que fumo fumariam num tempo que antecede o regresso de Colombo, trazendo consigo o tabaco das Américas, em mais de um século? Não se tratando de tabaco, seria possível que se tratasse do fumo de hashish ou de ópio, numa qualquer moda orientalizante trazida do reino de Preste João?


Não deixa de ser tentadora para a imaginação de um coleccionador de bizarrias, no século XXI, a ideia de uma psicadélia tardo-medieval, ao escutar os complexos melismas e os efeitos cromáticos que parecem traduzir um certo entorpecimento ou, pelo menos, alterações das faculdades expressivas do cantor, poeta ou personagem alvo desta alegada sátira. E é verdade que as palavras repetidas induzem facilmente esse sentido de uma intoxicação pelo fumo inalado. Mas será difícil com a escassez de testemunhos documentais e a dificuldade de acesso a um objecto, datando de quase sete séculos, descobrir o verdadeiro significado daquelas palavras. Alguns estudiosos do assunto especularam sobre a hipótese de a música ser uma sátira dirigida a um grupo de intelectuais tonitruantes, a que o poeta Eustache Deschamps teria aludido num outro poema – “La Chartre des Fumeux” -, do qual ele seria a principal figura, o tal “Fumeux” do rondeau. O grupo seria conhecido pela sua jactância e pelos seus hábitos boémios, pelo seu histriónico inebriamento literal e espiritual. As palavras “fumeux” e “fume” poderiam, de facto, traduzir uma intoxicação voluntária praticada pelos membros do grupo, mas poderiam, tão somente, referir-se a um humor característico – um quinto humor que se acrescentaria à teoria dos humores herdado da antiguidade – do temperamento do dito “Fumeux”, que deitaria fumo pela cabeça de tanta introspecção.

Independentemente de todas estas especulações, vale a pena escutar, depois desta do Ensemble P.A.N. (1989), uma outra interpretação deste “Fumeux fume” pelo Early Music Consort of London (gravado em 1973) e, finalmente, uma balada do compositor Hasprois – também conhecido como Johannes Symonis – que também se encontra no Codex de Chantilly e que se chama “Puis que je suis fumeux”, referindo-se também ao tópico de Solage.

The Decayes – “Ich bin ein spiegelei” (1978)

E agora algo completamente diferente: “Ich bin ein spiegelei” – ou eu sou um ovo estrelado. Mas o disco desta semana não é absurdo e, no entanto, a lógica do seu sentido é análoga a certos processos radioactivos de decaimento, desintegrando-se o seu núcleo através da emissão de energia em forma de radiação, sendo, ainda, certo que o seu centro magnético se desvia angularmente do centro real como a declinação magnética do norte numa bússola. E o seu humor, como o próprio nome indica, é desconcertante e estrela-se como um ovo na sertã. Até agora a apresentação deste projecto pode parecer demasiado obscura, mas não é nem de perto tão enigmático e inapreensível como a própria banda. Estamos a falar de The Decayes e do seu arguível primeiro LP “Ich bin ein Spiegelei”, editado em 1978 pela Imgrat Records, apenas com 100 cópias numeradas à mão, inseridas em capas todas diferentes, também estas pintadas à mão.



Dado o carácter elistista e propositadamente obscurantista do grupo, a pouca informação disponível parece ser meramente especulativa e o facto de existir um site oficial da banda é apenas uma falsa esperança, já que o sentido de humor obscuro e sem sentido dos The Decayes nele se espelha turvamente: prolixo em dados técnicos sobre os fenómenos de decaimento de ondas acústicas e marítimas ou prolífero em ligações para sites informativos sobre morcegos, muco e lampreias do mar, mas extremamente lacónico quanto à sua biodiscografia. Dados cruzados permitem, no entanto, ligá-los ao movimento experimental da costa oeste dos Estados Unidos, nos anos 70, e ao LAFMS, ou seja, ao Los Angeles Free Music Society, um conjunto de experimentadores musicais, inspirados pelo humor dos Mothers of Invention, mas também pelas inovações do free jazz galáctico de Sun Ra e pelas aventuras microtonais de Harry Partch. A improvisação é assim uma das marcas deste disco inusitado e por pouco inaudito. Apesar dos recursos parcos de uma produção caseira, tipicamente DIY (Do-It-Yourself), a sua liberalidade experimentalista resulta num pletórico discurso contínuo de efeitos acústicos e eléctricos originais. É fácil de perceber o que prendeu a atenção de Steven Stapleton neste conjunto bizarro e totalmente imprevisível.
O LP é constituído por apenas uma faixa em cada lado do vinil. No primeiro, Deur Müten, - e nem sequer nos aventuramos na tentativa de tentar perceber o significado desta expressão germano-flamenga – um clarinete ou talvez um saxofone imerso numa câmara aquosa de efeitos ecóicos e uma guitarra compõem o ambiente etéreo de uma ablução matinal ou de uma mera lavagem de roupa íntima, num alguidar minimal suspenso num arco-íris rileyano de ar curvo. È o que estamos a ouvir em fundo. O lado B, homónimo ao álbum, Ich bin ein Spiegelei, trilha-se primeiro entre as asperidades e rugosidades materiais do som do vinil e da fita magnética para se abrir a uma deriva psicadélica pós-industrial que percorre os interstícios de uma coluna de som, habitada como as paredes de um quarto pelos sussurros e murmúrios de uma guitarra supersaturada. É ela que vamos agora escutar.

(Crónica originalmente escrita para o Kosmos)

Bruce Haack, The Electric Lucifer (1969)


“O meu coração bate / electricamente / O meu cérebro computa / Programa-me // Eu sou complicado / Deixa-me ser / Sou novo / Programa-me // Esta viagem / a realidade / será minha, se tu / Me deixares ser // Eu sou amor e eu sou livre / Sou infante / Programa-me.” Esta é a letra de “Program Me” uma faixa incluída no disco The Electric Lúcifer de Bruce Haack e carrega como que uma auto-apresentação do excêntrico músico e inventor de instrumentos musicais, inspirado pelo peyote que foi tomando desde a juventude junto dos índios americanos com quem conviveu desde muito cedo e pelo espírito hippie da geração de sessenta que atravessava a América, com mensagens de esperança, transformação, mas também de contestação. O disco, editado pela Columbia Records, em 1969, é um disco conceptual sobre a guerra entre o céu e o inferno com a terra pelo meio. Como uma parábola contra a guerra do Vietnam e pela redenção dos homens, o álbum fascina mais pela bizarria instrumental e estrutural do disco – definitivamente eclético nos seus recursos – do que pelo conteúdo lírico, que ainda assim sobrevive pelo seu carácter abstracto e poético-metafísico.

Bruce Haack nasceu na fria província de Alberta, próximo das Montanhas Rochosas, mas do lado canadiano, numa geografia desolada e hostil, onde passou uma infância solitária e isolada. E, no entanto, isso terá por ventura estimulado a sua imaginação para preencher as horas de solidão, entretendo-se com as virtualidades sonoras do que o rodeava. Desde cedo revelou um bom ouvido musical, dando lições de piano a partir dos 12 anos de idade, mas a sua relação com os sons terá sido mais concreta do que abstracta, como demonstra o chumbo na entrada para a escola superior de música atribuída aos seus fracos talentos de notação musical. Formou-se em psicologia na Universidade de Alberta, em Edmonton, não perdendo a oportunidade de continuar a sua actividade de criativo músico, compondo bandas sonoras e música incidental para peças de teatro universitário, acabando por receber uma bolsa do governo canadiano para ir estudar na reputada Julliard School em Nova York. Aí começou uma longa amizada com o pianista Ted “Praxiteles” Pandel, com quem haveria de criar e produzir parte dos seus álbuns. Apesar de abandonar a disciplina da Julliard School passados 8 meses, Bruce não abandonaria de modo nenhum a sua carreira musical, bem, pelo contrário, continuando a compor música para teatro e dança, utilizando não só os instrumentos tradicionais, mas também uma panóplia de artefactos electrónicos e fita magnética para produzir o “novo” que apregoa em “Program Me”, aproximando-se de forma heterodoxa da estética da música concreta. Escreveu também algumas composições pop, mas que não lhe deram tanta notoriedade como as suas experimentações e invenções, durante os anos 60, as quais o levaram mesmo a participar em programas televisivos de renome, como o Tonight Show com Johnny Carson, onde exibia os seus brinquedos sonoros. Um dos que mais fascinou o público foi o Dermatron, um sintetizador ligado ao corpo de uma pessoa que permitia com o toque e o calor humanos produzir sons inauditos. Importante na sua carreira de músico e inventor foi a sua colaboração com a professora de dança para crianças Esther Nelson, criando música para crianças com propósitos educacionais e de formação musical, registada em vários discos da série Dance, Sing & Listen, nos anos 60. Para além dos instrumentos convencionais, Haack construía os seus próprios instrumentos electrónicos a partir de brinquedos que comprava nos mercados de rua, os quais adaptava para conceber moduladores e sintetizadores. A natureza inovadora das suas invenções atraíu a atenção de empresas, que o contrataram para fazer jingles de publicidades, ao mesmo tempo que lhe permitia promover a música electrónica. O empresário Chris Kachulis deu-lhe a conhecer a revolução musical psicadélica, onde os seus sons do outro mundo assentavam que nem uma luva. Com a influência do rock ácido e da ideologia do flower-power, criou, então, The Electric Lúcifer.



Deste disco, escutámos desde o início desta crónica “Super Nova”. Às suas próprias invenções, incluindo um protótipo de vocoder (que se pode ouvir na faixa “Electric to me turn”), juntaram-se os moogs e a voz do próprio Kachulis que patrocinou o projecto. Escutámos de seguida a faixa “Program Me” com cuja tradução iniciámos a crónica e depois “War”, que demonstram a motivação hippie do álbum mas também o ecletismo musical que o estrutura.

The Burroughs’ Soft Adding Machine

William Seward Burroughs I + William Seward Burroughs II / Soma: “Writing is fifty years behind painting”, disse Brion Gysin. / “Comecei a minha viagem na morgue com velhos jornais, dobrando e inserindo o jornal de hoje no jornal de ontem e teclando compostos a partir deles.” Uncle Bill. “Quando dobro o jornal de hoje e o coloco ao lado do jornal de ontem, também dobrado, e componho as imagens de modo a montar uma secção temporal, estou literalmente a regressar ao tempo em que leio o jornal de ontem, a viajar para trás no tempo, até ontem.” O calendário maya começa na data mítica 5 Ahua 8 Cumhu e desenrola-se, em ciclos solares, lunares e cerimoniais até ao fim do mundo. Em 1885, William S. Burroughs – o avô – inventava uma máquina de calcular que facilitava as operações dos contabilistas. Em 1966, William S. Burroughs – o neto – conseguia publicar, na Grove Press, a segunda edição de The Soft Machine que tinha menos 80 páginas do que a primeira edição de 1961. A “máquina mole” também permite juntar, acoplar e transferir-se, mas molda-se conforme o contentor. E as cores, vermelho, verde, azul e branco, desempenham um papel importante nessas viagens no tempo, mas é a apomorfina que permite tratar o excesso de adição, através da indução de fluxos orgânicos para dentro e para fora do corpo.



A linguagem é um vírus. Instala-se na mente como um alienígena para aí se incubar. As palavras replicam-se de modo intracelular e transferem-se, saltando de corpo em corpo, levando consigo outros significados para criar novos sentidos. As técnicas do cut-up e do fold-in usadas em The Soft Machine, The Ticket that Exploded e Nova Express, por Burroughs, na senda dos surrealistas e de Brion Gysin, são processos linguísticos infecciosos, que contaminam e são contaminados por textos alienados e alienantes. Assim foi concebido The Soft Machine que contou três edições, todas elas diferentes, ora na ordem dos textos que compõem a “novela”, ora no conteúdo dos textos seleccionados. As palavras e as frases percorrem as experiências alucinadas de um navegante psicotrópico como era William Burroughs, referindo-se sobretudo a temas que assombravam a vida do escritor, tal como a guerra entre os sexos, o abuso de drogas e as técnicas de controlo. Se no entanto for necessário encontrar um núcleo narrativo, ele aparece de forma mais clara no capítulo The Mayan Caper, onde um agente secreto conta como aprendeu as técnicas de viagem no tempo e de metamorfose do corpo usando tecido indiferenciado, para se infiltrar num grupo de pastores que usam o calendário maya para controlar trabalhadores escravizados num campo de produção de milho, de modo a subverter as suas técnicas de controlo – manipulando as imagens e os sons com a ajuda de ondas de rádio - e assim provocar a revolução e a queda do regime hierárquico. Os relatos estão cheios de alucinações que são projectadas de forma narrativa não-linear em imagens literárias na mente do leitor, o qual acaba por ser contaminado linguisticamente pelo livro.



O som que acompanhou em fundo esta crónica foi de uma peça composta, no início dos anos 60, por William Burroughs com o programador informático Ian Sommerville, intitulada “Silver Smoke of Dreams” e que usava uma outra técnica semelhante à dos cut-ups, o “drop-in”, onde aparentemente se inseriam fragmentos sonoros das suas vozes gravadas em fita magnética entre outros fragmentos vocais cortados. De seguida ficámos com uma outra peça, realizada por volta de 1965, pelos mesmos Burroughs e Sommerville, entre Nova York e Londres, com o nome “K9 was in combat with the alien mind-screens”, a qual ilustra sonoramente a técnica do cut-up usada na novela The Soft Machine.

Jardins Surrealistas: Estruturas do Inconsciente II

Partindo da Cidade do México em direcção a Tampico e daí até à selvaticamente enclausurada Xilitla, encontramos uma das mais monumentais, excêntricas e improváveis obras surrealistas: Las Pozas, um jardim edificado pelo excêntrico Edward James, eminente patrono do surrealismo, nascido em 1907, no seio de uma família abastada.


Edward James apaixonou-se por este local numa expedição realizada em 1948, em busca do local perfeito para instalar a sua monumental colecção de orquídeas. Reza a lenda que, quando encontraram as piscinas naturais e imponente cascata que congregam um óasis aquático por entre o aglutinador verde das folhagens que caracteriza o local, um amigo de James resolve despir-se e deliciar-se com um banho refrescante. Depois de satisfeito o desejo, deita-se sobre uma rocha para secar ao sol, sendo repentinamente coberto, da cabeça aos pés, por uma nuvem de borboletas azuis. Com uma mente impregnada de misticismo, Edward James toma este singular evento como um inequívoco sinal de origem não identificada, mas credibilidade indubitável, e compra o terreno circundante dando início à sua obra. Este empreendimento dificilmente seria viável noutro país, já que os regulamentos de construção eram praticamente inexistentes, ou facilmente olvidáveis perante o peso dos pesos. Para além disso, e em oposição à austeridade britânica, a permissividade mexicana noutros tipos de regulamentação, particularmente aquela que rege o comportamento social, terá sido outro critério da selecção de James. Começa então a emergir, das profundezas da selva, um delírio megalómano de caprichosas e aparentemente inacabadas estruturas em betão, alimentado pelo suor de 150 operários. De assinalar que, actualmente, são necessários 50 jardineiros para cortar a selva que incessantemente procura devorar o jardim sonhado por James.



Já a escolha de Park Guell para integrar um lote de construções surrealistas parece um anacronismo imperdoável, já que este jardim, património da humanidade pela UNESCO, foi congeminado largos anos antes de Apollinaire ter cunhado o termo surrealismo. Contudo, partimos à conquista do irracional, assumindo uma postura onírica que ignora a linearidade temporal, e nessa senda encontramos no parque de Antoni Gaudi, uma proto-consciência do surrealismo. Desde os sinuosos caminhos que conduzem a parte alguma, às composições em vidro e azulejo que adornam as balaustradas da praça central, passando pela exótica vegetação, não temos dúvidas, ao percorrer este jardim, de estarmos perante uma estrutura do inconsciente.



Playlist de 23 de Setembro de 2010:
Guillaume Apollinaire - "Le Pont Mirabeau"
Guillaume Apollinaire - "Le Voyageur"
Erik Satie - "Parade 1" (Orchestral Works)
The Camarata Contemporary Chamber Group - "Cinq Grimaces" (The Electronic Spirit Of Erik Satie)
George Antheil - "Ballet Mécanique" (Ballet Mécanique)
Robert Desnos - "Description Of A Dream"
Nurse With Wound - "Paranoia In Hi-Fi" (Paranoia In Hi-Fi)

Outlaw Biker Music

Desde muito cedo que as vivências internas dos grupos marginais de motoqueiros, cujo nascimento se pode situar algures na costa oeste dos Estados Unidos no final da década de 1940, e as relações problemáticas que mantinham com as pacatas comunidades suburbanas, foram apropriadas pela indústria cinematográfica, capitalizando o fascínio e temor que a classe média nutria por estes destruidores de civilizações.

O primeiro retrato fílmico - The Wild One - protagonizado por Marlon Brando surgiu logo em 1953, mas a verdadeira eclosão do género "Outlaw Biker Film" ocorreu no seguimento da atenção mediática votada aos míticos Hells Angels, retratados no livro de Hunter S. Thompson, "Hell's Angels: The Strange And Terrible Saga Of The Outlaw Motorcycle Gangs", editado em 1966. Dois anos antes, o grupo feminino The Shangri-las, conhecido pelas suas interpretações de melodramas adolescentes, gravavam "Leader Of The Pack", colhendo sucesso comercial instântaneo. Neste tema conhecemos a história de Betty, uma ingénua adolescente norte-americana que se enamora à primeira vista por Jimmy, cabecilha de um gangue de motoqueiros. Este encontro viria a revelar-se fatal para o rapaz, oriundo do "outro lado da cidade". Enclausurado entre a desaprovação dos pais de Betty e o monstruoso desejo que nutria pela jovem adolescente, tresloucado pelo desespero que o consumia, resolve lançar-se numa fúria motórica pela estrada que a chuva havia tornado demasiado escorregadia...

Kenneth Anger viria a recuperar esta música para a banda sonora de um dos primeiros filmes sobre motoqueiros marginais, o polémico Scorpio Rising, e também Russ Meyer, mestre dos filmes de baixo orçamento mas generosos seios, efectuou uma incursão por este género em 1965 com a película Motorpsycho, na qual encontramos um dos primeiros retratos em cinema de um veterano da guerra do Vietname perturbado.

Contudo, o grande marco inauguratório do "Outlaw Biker Film" foi The Wild Angels de 1966. Realizado por Roger Corman, este filme contava com Peter Fonda no principal papel, sendo assim a primeira associação do actor com a contracultura dos anos 1960, três anos antes de Easy Rider. Em The Wild Angels, para além da violência e do sexo, encontramos outro lugar comum associado aos grupos de motoqueiros: o consumo de substâncias psicotrópicas. Com maior ou menor grau de precisão, poderíamos considerar que o motoqueiro facultava um contraponto óbvio ao hippie. Os dois nada mais seriam que os lados da mesma moeda, o Yin e Yang dos frenéticos anos 1960, uns dedicados à paz e ao amor, os outros ao sexo e à violência, ambos hedonistas e eminentes adeptos da iniciação alucinogénea.

Numerosos filmes surgiram após o recepção calorosa pelo público de The Wild Angels. Hells Angels On Wheels de 1967 contava com um Jack Nicholson em início de carreira e, no mesmo ano, o recentemente falecido Dennis Hopper protagonizava The Glory Stompers. Mais tarde, a união de Fonda, Hopper e Nicholson daria origem ao clássico Easy Rider que, na realidade, é a antítese do "Outlaw Biker Film". Em Easy Rider, ao invés de serem explorados os receios da populaça através da atribuição de caracteres diabólicos ao motoqueiro, são elencadas uma série de questões e tensões sociais que assolavam a sociedade americana, tais como a queda do movimento hippie, o estilo de vida comunal, o consumo de drogas e, sobretudo, o preconceito das em relação à condição de motoqueiro que uma década de "Outlaw Biker Films" ajudou a cimentar.

Laboratório Chimico, 26 de Agosto de 2010

Foram recuperados numerosos temas das bandas sonoras de Motorpsycho, The Wild Angels, Naked Angels, Easy Rider. Para além disso foi possível escutar "Leader Of The Pack" retirado da compilação "Myrmidons Of Melodrama" das The Shangri-las, e o novo albúm dos Acid Eater, apropriadamente intitulado "Black Fuzz On Wheels".

Estruturas do Inconsciente

Salvador Dali - "Surrealist Architecture" (1932)

Materialização do inconsciente em estruturas concretas para usufruto quotidiano, a arquitectura surrealista afigura-se, à partida, um empreendimento impossível devido à diferença entre as leis físicas, que regem o mundo objectivo, e as leis mentais, que regem o mundo subjectivo. Contudo, a fértil imaginação e sublime engenho de um conjunto restrito de indivíduos, permitiu a edificação de verdadeiras homenagens ao reino dos sonhos, as quais servirão de guião para algumas emissões.
No dia 9 de Setembro de 2010, o Laboratório Chimico debruçou-se sobre dois exemplares desta arte, ambos situados em França: o "Palais Idéal" de Ferdinand Cheval e a "Maison de Poupées".

Começamos pelo "Palais Idéal", situado a sul de Lyon, na localidade de Hauterives. Este "Travail d'un seul homme" (como se pode ler numa das inscrições que adornam o edifício), constitui uma prova inequívoca da possibilidade do impossível quando confrontado com um espiríto persistente e hiper-criativo. Homem de poucos estudos e origens modestas, nascido em 1836 e carteiro de profissão, Ferdinand Cheval iniciou esta grandiosa obra em Abril de 1879, para apenas terminar 33 anos mais tarde. Recorda as suas rondas de entrega do correio, prévias ao início dos labores, como fulcrais para exercitar o seu imaginário: "What else is there to do when one is constantly walking in the same setting, apart from dreaming? To fill my thoughts, I built in my dreams a magical palace…". O pretexto para passar do onirismo à acção, aconteceu precisamente numa dessas rondas, ao tropeçar numa pedra que o impressionou pela forma e feitio. Esta foi a primeira de milhares de pedras que diligentemente começou a recolher diariamente, e que à noite, sob a ténue luz de um candeeiro a óleo, incorporava no seu palácio fantástico.


Le Palais Idéal


A descrição por palavras das intricassias infinitamente complexas decorrentes do meticuloso arranjo das pedras, invocando mútiplas mitologias e criaturas fantásticas numa amálgama unicamente possível em sonhos mirabolantes, revelar-se-ia sempre incompleta, por muitos pormenores que contivesse. Não será assim de estranhar que, pouco tempo antes da sua morte, o facteur Cheval visse o seu trabalho ser reconhecido por personagens proeminentes do surrrealismo, como André Breton e Max Ernst (que inclusivamente criou uma colagem intitulada "The Postman Cheval"). Tal reconhecimento culminaria em 1969, quando o Ministro da Cultura André Malraux declarou o "Palais Idéal" como marco cultural e património nacional.


Max Ernst - "The Postman Cheval" (1932)

A informação disponível sobre a "Maison de Poupées" é bem mais escassa. Com efeito, sobre este curioso edifício apenas dispomos dos dados contidos num pequeno artigo publicado no terceiro volume da "Strange Attractor" de 2006, da autoria de Robert Ansell, co-fundador e director artístico da Fulgur Limited, uma editora especializada em esoterismo contemporâneo. As coordenadas da sua localização são desconhecidas e as fotografias mostram uma singela casa de campo, sobre a qual uma mente irrequieta, certamente imbuída daquele humor negro que André Breton falava, foi obsessivamente acumulando bonecas de plástico, brinquedos variados, duendes de jardim e outros que tais. O efeito produzido é semelhante ao eclodir da floração nas imensas roseiras da Rosarie du Val-de-Marne à l'Haÿ-les-Roses, mas, ao invés de flores multicolores, das paredes deste casebre no sul de França, brotaram milhentos resquícios de sonhos infantis olvidados. Aqui fica um excerto do artigo:

"Deep in the heart of southern France, amid the lavender, lemon groves and cicadas, rests an extraordinary house (...) reaching the far entrance, the visitor finds a vast graveyard of giant stuffed toys. Sagging and mould-ridden, astride slides, bicycles and plastic play equipment, it is not hard to imagine they were perhaps once enjoying a child's party. Then, in a surreal Pompeian tragedy, adulthood erupted and rained upon the eldricht scene, freezing it for eternity (...) It is as if Hans Bellmer and Joseph Ferdinand Cheval had collaborated under the direction of Breton himself to create a mysterious, mocking, menagerie. Raw and flawed, la maison de poupées is a rare jewel indeed".

A escolha da banda sonora obedeceu ao mote "música surrealista para uma arquitectura surrealista":

Nurse With Wound - "June 9" (Shipwreck Radio Volume Two: Eight Enigmatic Episodes From Utvaer)
Andrew Liles - "Come And See" (All Closed Doors)
Andrew Liles - "An Eternal Quest" (All Closed Doors)
Salvador Dalí & Igor Wakhévitch - "Troisième Entrée Et Première Sortie" (Être Dieu: Opéra-poème, Audiovisuel et Cathare en Six Parties)
Edgar Varèse - "Density 21.5" (Complete Works Of Edgar Varèse: Volume 1)
Andrew Liles & Jean-Hervé Péron - "The Drummer Is On Valium" (Fini!)

True Sheffield Black Psychedelia


De alguns anos a esta parte, a urbe industrial de Sheffield viu nascer uma das facetas mais sombrias e obscuras da cultura psicadélica, a qual agrega dois géneros aparentemente díspares. Este híbrido estílistico denominado "True Sheffield Black Psychedelia", paranomásia resultante da semelhança sintática com o clássico "True Norwegian Black Metal", permanece, injustamente díriamos, mui pouco divulgado na actualidade, apesar da estranheza e curiosidade, que imediatamente assaltam o ouvinte, facilitar a imersão nas intricassias sonoras debitadas por um conjunto de músicos cujo centro de operações gravita em torno da editora Frequency 13.

Playlist, 08 de Julho de 2010:
Torture Gnosis - "General Cemetery (East-West)" (Torture Gnosis, 2009)
Torture Gnosis - "Post Industrial Decay" (Torture Gnosis, 2009)
Skultroll - "Hideously Amplified World" (Skultroll, 2007)
Skultroll - "Doomed Burdens" (Skultroll, 2007)
Ice Bound Majesty - "Book Of Kalends" (Tomb To Erect, 2007)
Rraapcek - "Adept Edit" (download directo do blog da WFMU)
Black Vomit - "Dark Beloved Cloud" (Jungle Death, 2009)
Lupus Golem - "Minotaure Part I" (Minotaure, 2008)

Para acederem ao álbum de Torture Gnosis e de Lupus Golem, basta acederem à página da editora norueguesa Twilight Luggage

Para mergulharem neste bizarro ambiente recomendamos a compilação "Audio Apogee - Frequency Thirteen Records Compilation: An Anti Baroque Fieldtrip Into Aire Movement And Grey Vibration"

Les états hypnotiques de Jean-Michel Jarre (1969-1974)

Não penseis em nada … sentis-vos bem … nada mais existe à vossa volta … a não ser a música que escutais e a minha voz. Sois apenas dois … e a música arrasta-vos um para o outro, magnetizados irresistivelmente pelos sons, fascinados, hipnotizados; a vontade desaparece, os corpos abraçam-se e começam a dançar, num mar de desejos, encantados… e dançais… São mais ou menos estas as palavras proferidas pela voz de Dominique Webb, ilusionista e hipnotizador, no tema “Hypnôse”, composto por Jean-Michel Jarre para um espectáculo de magia, no Olympia, em 1973. A composição minimal, os sons rudes do Moog e o ritmo encantatório parecem primitivos, como que traços atávicos numa câmara analógica e ainda longíquos, em relação aos futuros sintetizadores digitais e aos sofisticados arpeggios do compositor de Oxygène. Com efeito, antes de começar a sua internacionalização e os seus mega-sucessos, Jarre tinha já um percurso musical rico e variado.


Nascido em Lyon, em França, filho biológico do compositor Maurice Jarre – célebre pelas inúmeras bandas-sonoras que criou em Hollywood, como “Lawrence da Arábia”, “Doctor Zhivago” ou “Dead Poets Society” – e neto de André Jarre que, para além de músico, inventou a primeira mesa de mistura da Radio Lyon, desde cedo recebeu uma educação musical clássica, fomentada pela mãe e pelos avós, que lhe proporcionaram ainda uma convivência com um mundo culto povoado de músicos e artistas. Como muitos jovens dos anos 60, Jarre foi guitarrista numa banda de rock – The Dustbins – a qual chegou a aparecer no filme de 1967, “Des garçons et des filles”. Interessado pela experimentação e pelas transformações musicais que as novas tecnologias permitiam, juntou-se em 1968 ao Groupe de Recherches Musicales, sob a direcção de Pierre Schaeffer, um dos inventores da música concreta e o pensador da arte dos “objectos sonoros”. Foi nessa altura que Jarre começou a trabalhar com um sintetizador modular Moog, ao qual adicionou um gravador Revox e outros sintetizadores analógicos SEM, confeccionando no estúdio improvisado na sua cozinha as suas primeiras produções originais. Em 1969, cria o seu primeiro single “La Cage”, mas devido ao seu carácter experimental e vanguardista, só em 1971, a Pathé Marconi arriscou o seu lançamento comercial, que, na verdade, se veio a revelar um fracasso, com apenas 117 cópias vendidas. O single foi interpretado ao vivo pelo próprio Jarre, por ocasião da reabertura da Ópera Garnier em Paris, em 1971, e integrado na opera-ballet electro-acústica AOR, coreografada por Norbert Schmucki. Jarre haveria de produzir várias peças para ballet, teatro, televisão, publicidade até começar a trabalhar com artistas comerciais como Patrick Juvet e Françoise Hardy e uma banda sonora para o filme Les Granges Brûlées, com Alain Delon e Simone Signoret, que recupera de certa forma o trabalho do seu primeiro álbum “Deserted Palace”. Em 1976, lança o álbum que lhe haveria de dar fama mundial Oxygène e a partir daí a história é outra…

Em fundo escutámos logo no início da crónica o lado B, instrumental, do disco editado em 1972 pela Disques Motors, “Hypnôse” e de seguida começámos a ouvir “Poltergeist Party”, o primeiro tema do primeiro álbum de 1972. Ficámos depois com o já referido primeiro single “La Cage”, uma peça marcada pelo período GRM e pela música concreta, mas também respirando os ares psicadélicos do tempo. Houve ainda tempo para o lado B desse single, “Erosmachine” que evoca logo no início o mistério acústico dos objectos sonoros, os quais se deixam envolver pelo erotismo dos sopros e suspiros (afinal, quão longe estaria Jarre de umas “Variations pour une Porte et Un Soupir”?). Finalizámos com outra raridade de Jean-Michel Jarre, que sob o nome de 1906 edita em 1974 um single “Cartolina”, do qual escutaremos o lado B, “Helza”, um relaxado tema de Jazz de fusão mas que aspira às derivas cósmicas do país da sauer kraut. Enjoy!

Caderno Escolar Ref. 233.V

Curiosos objectos que nos descobriram numa papelaria da cidade de Coimbra.
"Cadernos Psicadélicos" (ver pormenor no canto direito da contracapa)





Ευάνγελος Οδυσσέας Παπαθανασίου, Filho de Afrodite

Ao percorrer as faixas da compilação "The BYG Deal", editada pela Finders Keepers em 2009, deparamo-nos com um nome improvável, o qual motivou a emissão de 17 de Junho de 2010 do Laboratório Chimico. Fundada em 1968 no seguimento das revoltas estudantis, a BYG funcionou como catalisador da cena underground francesa, alimentando apetites colectivos pelo jazz, blues e rock psicadélico, e acalentando a chama criativa inspirada pela revolução. Neste registo compilatório encontramos nomes familiares, como Gong ou Brigitte Fontaine, a par do misterioso nome reproduzido no título deste texto, (Evangelos Odysseas Papathanassiou) cujos amantes da música sintetizada rapidamente reconhecerão como Vangelis. Em "The BYG Deal" dois temas pertencem-lhe, um atribuído a Vangelis e outro ao projecto Alpha Beta, revelando uma faceta do grego, para muitos desconhecida, pontuada pelo delírio psicadélico e que suscitou uma viagem pela sua história pessoal com o intuito de averiguar se outras improbablidades estariam ocultas por detrás do véu encadeador que foram os seus grandes sucessos como compositor de bandas sonoras.



Nascido em 1943, Vangelis deu os primeiros passos da sua carreira profissional no grupo The Forminx, o qual se tornou bastante reconhecido e conceituado na Grécia, até ao término de actividades em 1966. Um ano mais tarde, Evangelos Odysseas Papathanassiou junta-se a outra vaca sagrada da música helénica, Demis Roussos, formando os Aphrodite's Child, projecto de pop psicadélico cujo nome derivava de uma música de Dick Campbell contida no albúm "Sings Where It's At". Os primeiros trabalhos deste quarteto podem ser encontrados no disco do seu compatriota George Romanos "In Concert And In The Studio", contudo, considerando a sua terra natal um campo pouco fértil para o estilo musical que praticavam, optam por partir em direcção à Meca do psicadelismo europeu, Londres.


A viagem foi conturbada. Os músicos acabariam por não conseguir as licenças de trabalho exigidas pelo Reino Unido, o que, conjuntamente com as greves e protestos estudantis em Maio de 68, determinaram o assentar de arraiais dos Aphrodite's Child em Paris. Nesta cidade assinam pela Mercury Records e gravam dois discos, "End Of The World" em 1968, e "It's Five O'Clock" em 1969, ambos aclamados pela crítica e carinhosamente acolhidos pelo público. A jóia da coroa e último dos três albuns de originais do grupo começa a ser gravado em 1970, num momento em que as tensões entre os membros começavam a emergir. Tratava-se de um albúm conceptual, fruto do trabalho de Vangelis com o letrista Costas Ferris de adaptação do livro bíblico "Apocalipse de São João", intitulado "666".

Verdadeira revelação de rock progressivo e psicadélico, destacando-se pela ausência da sensibilidade pop que permeava os outros registos, "666" motivou um longo litígio entre Vangelis e a editora, a qual objectava a inclusão da faixa "∞" onde Irene Papas repetia as palavras "I was, I am, I am to come" num registo de histeria erótica. Outro foco de conflito era uma pequena referência na capa do disco onde se podia ler que este tinha sido gravado sob a influência de Sahlep. Erroneamente interpretada como um substância psicotrópica ou ritual ocultista, Sahlep era simplesmente uma bebida popular no Mediterrâneo Oriental, e o duplo LP lá acabou por ver a luz do dia em 1972, através da Vertigo Records, subsidiária da Mercury, numa altura em que os Aphrodite's Child já se haviam separado para prosseguirem carreiras individuais de sucesso variável.


Mas a história paralela de Vangelis pela música psicadélica não terminou com o apocalipse dos filhos de Afrodite. Em 1971 participa numa série de sessões de improvisação nos estúdios Marquee em Londres, das quais resultariam dois albuns, "Hypothesis" e "The Dragon", lançados em 1978 sem a autorização do músico, acabando por ser retirados do mercado pouco tempo depois. O rock progressivo continuou, assim, presente nas primeiras fases do seu trabalho em nome próprio, dando paulatinamente lugar à electrónica. O reconhecimento internacional, esse veio no formato banda sonora, com os sucessos de "Charriots Of Fire" e "Blade Runner", mas essa é outra história...

A incursão pelo passado de Vangelis teve a seguinte banda sonora:
Vangelis - "Stuffed Tomato" (V.A. - The BYG Deal)
Alpha Beta - "Atral Abuse" (V.A. - The BYG Deal)
Dick Campbell - "Aphrodite's Child" (Sings Where It's At)
George Romanos - "Eisagogi" (Two Small Blue Horses / In Concert And In The Studio)
Aphrodite's Child - "Valley Of Sadness" (End Of The World)
Aphrodite's Child - "Let Me Love, Let Me Live" (It's Five O'Clock)
Aphrodite's Child - "All The Seats Were Ocuppied" (666)
Vangelis - "Stuffed Aubergine" (The Dragon)

Mr. Suehiro Maruo’s Freakshow


Midori, shoujo tsubaki, a menina das camélias, pertencia a uma família pobre. O pai, endividado pelas dívidas do jogo, abandonou o lar e Midori, para ajudar a mãe doente, vendia flores nas ruas de Tokyo dos anos 20. Mas entretanto a mãe faleceu, deixando-a órfã e perdida num mundo cruel, do qual parecia ter sido resgatada quando um homem de chapéu de coco lhe propôs um trabalho no meio dos artistas. Porém, a desafortunada rapariga cedo descobriu que havia sido enganada e que se tornara simplesmente numa criada permanentemente maltratada por todos no circo de aberrações do senhor Arashi. Gigantes engolidores de espadas, anões desmembrados, hermafroditas e homens desfigurados de cabeça enfaixada povoavam os dias miseráveis de Midori, assediando-a, humilhando-a, tornando a sua vida tão infernal que preferia a morte. Até que um dia apareceu um novo personagem, Masamitsu, o carismático anão contorcionista que realizava o prodígio de se enfiar completamente num boião de vidro. Com o seu penetrante olhar, seduziu Midori e mostrou-se como o seu protector, impedindo que maltratassem a sua querida assistente. Frágil e sem outra esperança, Midori agarrou-se a ele revelando um sorriso que há muito havia perdido. Mas também Masamitsu tinha um lado obscuro e perturbador.


Esta história, posta em banda-desenhada, pelo já famoso Suehiro Maruo, inspira-se num antigo kami shibai, ou seja, um espectáculo tradicional que ocorria em feiras de rua, onde um contador de histórias se socorria de cartões com desenhos fantásticos para ilustrar as suas narrativas efabuladas, em cujo verso estavam por vezes escritas legendas relativas à imagem, que eram vendidas posteriormente aos que haviam ficado fascinados com aqueles contos cheios de drama e crueldade. Suehiro Maruo cruzou esta referência do Japão tradicional e do subgénero do muzan-e – gravuras que representavam atrocidades - com a estética do expressionismo alemão, fazendo jus à sua inspiração gótica de juventude. Na verdade, o trabalho de Suehiro Maruo sempre foi assombrado por esses autores mais obscuros como o Marquês de Sade, Edgar Allan Poe, Baudelaire ou Georges Bataille, onde o erótico e o grotesco sempre vão de mãos dadas para explorar as mais negras paixões da humanidade. Aliás, as suas obras são conotadas normalmente com o ero-guro, movimento literário e artístico dos anos 20/30 que se focava na violência, no erotismo e no grotesco e que aliava a tradição dos artistas shunga como Yoshitoshi com o imaginário decadente da república de Weimar.



Midori foi ainda adaptado para o cinema de animação por Hiroshi Harada, um renegado da indústria de animação japonesa, tal como Maruo havia sido no início pelas revistas de shonen manga. Rejeitado por inúmeros estúdios, decidiu gastar as suas poupanças numa produção independente, com a consultadoria artística do próprio Maruo e a ajuda de várias figuras do underground japonês, para realizar um filme que não teve distribuição comercial no Japão. Com efeito, as projecções do filme no Japão, a partir de 1992 – ano da sua conclusão – existiram apenas em circunstâncias bastante obscuras, fomentadas pelo próprio Harada que divulgava cripticamente o filme e a sua projecção, deixando pistas sobre a ocasião e o local para os que conseguissem encontrar poderem assistir ao filme, rodeados por um ambiente de cabaret e freakshow. A banda sonora foi composta nada mais nada menos que pelo não menos estranho J. A. Seazer, habitué da cena psicadélica e experimental japonesa, membro dos Tokyo Kid Brothers e da companhia de teatro de Shuji Terayama para a qual fez inúmeras composições.

Elogio do Psicadelismo Sombrio


Junichiro Tanizaki - "Elogio da Sombra" (primeira edição portuguesa)


"O facto de, na casa japonesa, o alpendre do telhado avançar tanto, deve-se ao clima, aos materiais de construção e a diversos outros factores, sem dúvida. Por exemplo, à falta de tijolos, de vidro e de cimento, terá sido preciso, para proteger as paredes das rajadas de chuva laterais, projectar o telhado para diante, de forma que o japonês, que teria certamente preferido uma divisão clara a uma escura, foi assim levado a fazer da necessidade virtude. Mas aquilo a que chamamos belo não é normalmente mais que uma sublimação das realidades da vida, e foi assim que os nossos antepassados, obrigados a viver quer quisessem quer não em divisões escuras, descobriram o belo no meio da sombra, e depressa utilizaram a sombra para obter efeitos estéticos."

Junichiro Tanizaki, "Elogio da Sombra"



Kousokuya - "Ray Night 1991-1992 Live"


Na emissão de 3 de Junho de 2010, foi traçado um paralelismo entre um ramo do psicadelismo que floresceu no Japão a partir de finais da década de 1960, caracterizado pelo negrume ácido das melodias, as vestimentas pretas dos seus artífices, e as capas monocromáticas e minimalistas que adornam os discos, e um ensaio de estética da autoria do escritor nipónico Junichiro Tanizaki intitulado "Elogio da Sombra" datado de 1933.

A hipótese levantada é que este género musical, que doravante nos atrevemos a designar "psicadelismo sombrio", revela, mais que o Group Sounds ou o Japrock, a essência da estética tradicional japonesa. No seu pequeno livro, Tanizaki apresenta uma série de exemplos concretos, da arquitectura das casas aos objectos lacados, passando pelo teatro e pelas vestimentas tradicionais, sobre os quais faz incidir as dicotomias luz e sombra, claridade e obscuridade, para contrastar Oriente e Ocidente, tradição e modernidade.


Keiji Haino - "Affection"


"Junichiro Tanizaki (1886-1965) não foi excepção nesta tendência e entusiasmo, sendo as suas obras de juventude caracterizadas por um estilo onde é visível o fascínio pelo Ocidente e onde são notórias as influências de autores como Edgar Poe, Charles Baudelaire ou Oscar Wilde. No entanto, este entusiasmo como que arrefeceu face ao trágico impacto do terramoto que ficou conhecido para a História pelo Grande Kanto de 1923 (142.000 mortos), sismo que levou Tanizaki a abandonar definitivamente Tóquio, sua cidade natal, e com ela o tipo de vida e as influências que até aí tanto o encantavam e o fizeram passar os dias de juventude numa boémia dourada, marcada pelos estigmas da modernidade. Na ressaca desse sismo interior, Junichiro Tanizaki abandonou a mulher e filhos e mudou-se para a zona de Kansai, região onde estão situadas as tradicionais cidades de Kyoto, Kobe e Osaka, passando, doravante, a sua obra a enaltecer os valores e a cultura japonesa dos seus antepassados. Publicado em 1933, o Elogio da Sombra demonstra com sublime rigor e detalhe descritivo essa nova postura de Tanizaki perante o mundo, sendo as suas páginas um louvor à especificidade (superioridade?) do modo japonês de encarar a existência e um manifesto de um certo desgosto pelo seu desaparecimento face à ocidentalização do Japão"


Pedro Serrano, nota introdutória à edição portuguesa de "Elogio da Sombra"



Les Rallizes Dénudés - "'77 Live"


Algumas décadas mais tarde, no Outono de 1967, a academia Eigakko, uma universidade fundada em 1875 por um samurai reformado, era povoada por um conjunto de estudantes intelectuais que rejeitavam o comercialismo galopante do Group Sounds de influência marcadamente britânica e americana, optando antes por enaltecer as virtudes da música folk japonesa. Os seus gostos recaiam sobre o traje negro e a literatura existencialista, os quais funcionavam como contraponto aos logótipos multicolores da Coca-cola e à filosofia "alegre" da contracultura hippie. A atmosfera fumarenta, escura e abafada dos cafés onde esta turba se reunia, acabaram por seduzir um jovem estudante, de seu nome Takeshi Mizutani, que em Novembro de 1967 forma um quarteto com Moriaki Wakabayashi (baixo), Takashi Kato (bateria) e Takeshi Nakamura (guitarra), mais tarde reconhecidos como Les Rallizes Dénudés. Proponentes de uma música agreste e sombria, pontuada por doses massivas de reverb e feedback, estas personagens reclusivas e isolacionistas faziam ecoar musicalmente as palavras contidas no ensaio de Tanizaki, fundando o "psicadelismo sombrio". Curioso será notar que, à semelhança de Junichiro Tanizaki, também Takeshi Mizutani foi influenciado pelos trabalhos de escritores ocidentais, como Jean-Paul Sartre, Antonin Artaud e Jacques Derrida, os quais prosseguiram na senda dos supracitados, explorando as facetas mais obscuras do psiquismo humano.


Suishou No Fune - "Where The Spirits Are"

Outros grupos trilharam caminhos similares, continuando alguns deles a subsistir na actualidade. Fushitsusha e Keiji Haino, Kousokuya e Jutok Kaneko, Suishou no Fune e a editora Psychedelic Speed Freak (P.S.F.), continuam a ostentar os estandartes deste "psicadelismo sombrio", o qual não será mais que uma nova camada de sedimentos que se acumulou no curso de água resultante do curioso intercâmbio entre Ocidente e Oriente, inundado de ambivalência, que remonta à abertura forçada do Japão em 1853.

Elogio da Sombra (capa da segunda edição portuguesa)

"Alguns poderão dizer que a beleza enganadora criada pela penumbra não é a beleza autêntica. Todavia, e tal como o dizia atrás, nós os Orientais criamos beleza ao fazermos nascer sombras em locais por si mesmo insignificantes.

Ramagens
se as juntarem e enlaçarem
uma cabana surge
desenlaçai-as e tereis
como antes a planura

diz o velho poema, e, afinal de contas, o nosso pensamento actua segundo um raciocínio análogo: creio que o belo não é uma substância em si, mas apenas um desenho de sombras, um jogo de claro-escuro produzido pela justaposição de diversas substâncias. Tal como uma pedra fosforescente que emite brilho quando colocada na escuridão e ao ser exposta à luz do dia perde todo o fascínio de jóia preciosa, também o belo perde a sua existência se lhe suprimirmos os efeitos da sombra. (...) Mas qual a razão para esta tendência de procurar o belo no obscuro com tanta força se manifestar apenas nos Orientais? Ainda não há muito, também o Ocidente ignorava a electricidade, o gás, o petróleo, mas, tanto quanto sei, nunca sentiu, a tentação de se deliciar com a sombra. (...) Qual poderá ser a origem de uma diferença de gostos tão radical? Pensando bem, é porque nós, Orientais, procuramos acomodar-nos aos limites que nos são impostos, que desde sempre nos satisfizemos com a nossa presente condição; consequentemente, não sentimos repulsa alguma pelo que é obscuro, resignamo-nos a ele como a algo de inevitável: se a luz é fraca, pois que o seja! Mais, afundamo-nos com delícia nas trevas e descobrimos-lhe uma beleza própria."

Junichiro Tanizaki, "Elogio da Sombra"



Delícias musicais que fundamentaram este paralelismo:
Keiji Haino - Untitled (Tenshi No Gijinka)
Les Rallizes Dénudés - "Enter The Mirror" (Flightless Bird)
Kousokuya - "Shadow Of A Dream" (Echoes From The Deep Underground)
Suishou no Fune - "Black Phantom" (Where The Spirits Are)

Acompanhamento audiovisual:

Temporal Paradox


Anomalias históricas, exercícios nostálgicos, uma forma de capitalizar um nicho de mercado orfão ou, muito simplesmente, o corolário da soma cumulativa da experiência psicadélica, são algumas das possibilidades interpretativas do trabalho de nick nicely, The Dukes Of Stratosphear e The Fraternal Order Of The All durante os anos 80 e 90 do século passado.


Lista de paradoxos temporais abordados no Laboratório Chimico de 13 de Maio de 2010:

Al Kooper & Stephen Stills - "Season Of The Witch" (Super Session)
nick nicely - "DC Dreams" (DCT Dreams)
nick nicely - "49 Cigars" (Hilly Fields)
The Dukes Of Stratosphear - "My Love Explodes" (25 O'Clock)
The Dukes Of Stratosphear - "The Mole From The Ministry" (25 O'Clock)
The Dukes Of Stratosphear - "You're My Drug" (Chips From The Chocolate Fireball)
The Dukes Of Stratosphear - "Brainiac's Daughter" (Psonic Psunspot)
The Fraternal Order Of The All - "Time Is Standing Still" (Greetings From Planet Love)
The Fraternal Order Of The All - "Love Tonight" (Greetings From Planet Love)
nick nicely - "On The Beach" (Psychotropia)
nick nicely - "1923" (Psychotropia)


Entre o espaço sideral e o espaço mental

O cosmos infinito permaneceu, ao longo dos tempos, uma influência maior na criação musical, como pudemos atestar nas duas emissões dedicadas a esta temática. Contudo, com o advento e massificação das substâncias alucinogéneas opera-se uma mudança radical na relação entre ambos. Assim, ao invés de almejar uma viagem por territórios alienígenas através do som, o bombardeamento sensorial operado pelo psicadelismo concretizava-se numa viagem por um outro espaço, igualmente infinito: o espaço mental. O enfoque estilístico altera-se igualmente, com a adopção do rock como língua franca.

A banda sonora foi a seguinte:

Lothar and The Hand People - "Space Hymn" (Space Hymn)
The Tornados - "Telstar" (Telstar/Jungle Fever)
The Blue Men - "I Hear A New World" (I Hear A New World: An Outer Space Music Fantasy By Joe Meek)
The Blue Men - "Magnetic Field" (I Hear A New World: An Outer Space Music Fantasy By Joe Meek)
The Jimi Hendrix Experience - "Third Stone From The Sun" (Are You Experienced)
The Jimi Hendrix Experience - "Exp" (Axis: Bold As Love)
The Jimi Hendrix Experience - "Up From The Skies" (Axis: Bold As Love)
Pink Floyd - "Astronomy Domine" (The Piper At The Gates Of Dawn)
Hawkwind - "Master Of The Universe" (In Search Of Space)

Psychedelic wormhole (2001: A space odyssey) 1968


Um buraco-de-verme (ou wormhole na língua que cunhou o termo pela primeira vez) é uma figura hipotética na topologia do sistema espaço-tempo acerca da qual a física teórica pós-einsteineana tem especulado e de que a ficção-científica se tem servido desde os meados do século XX. Muito grosseiramente, trata-se de um atalho através do espaço e do tempo que ligaria dois lugares distintos e não contíguos numa geometria não-euclideana, como se se tratasse de uma garganta ligando duas bocas abertas sobre dois momentos e locais distintos. Deste modo alimentou as narrativas que imaginaram o encontro ou mesmo a construção artificial desses buracos e a consequente possibilidade de viajar não só no espaço sideral como através do tempo cósmico. Mas, ainda que a concepção deste dispositivo topológico seja matematicamente possível e resolva eficazmente uma série de problemas abertos pela relatividade geral, muitos astrofísicos recusam a possibilidade de viagens no tempo, na medida em que a extrema instabilidade dessas estruturas provocaria a sua extinção no preciso momento em que um objecto entrasse num desses buracos. Não obstante, as actuais experiências no acelerador de partículas do CERN deram azo à especulação sobre uma eventual demonstração experimental da sua existência a uma escala quântica.
Visualmente, porém, a melhor ilustração do fenómeno poderá encontrar-se na sequência que ficou conhecida como “Star Gate”, no filme de 1968 de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço. O astronauta David Bowman, criado incialmente pelo escritor Arthur C. Clarke, ao aproximar-se de um monólito na órbita de Júpiter vê-se absorvido, a uma velocidade superior à da luz, por um túnel multi-colorido que distorce os limites da percepção do espaço e do tempo e o arrasta numa viagem, ao mesmo tempo, maravilhosa e aterradora para uma outra dimensão cósmica e existencial. As magníficas imagens do corredor hiperespacial foram criadas por uma técnica já utilizada por John Whitney em “Catalog” de 1961 e adaptada para o grande formato de 2001 por Douglas Trumbull: a técnica do “slit-scan”, que implica o intercalamento de uma película móvel estrategicamente fendida, entre a câmara, também ela móvel, e o objecto filmado, neste caso painéis de vidro pintado. O resultado final é o de uma trip psicadélica inesquecível que culmina no encontro do astronauta com o seu próprio processo de envelhecimento, numa surrealista câmara mobilada ao estilo Luís XV, e à visão da sua própria morte. O reaparecimento do monólito aos seus pés permite uma transformação redentora de Dave num feto envolvido por uma esfera de luz que entra na órbita do planeta terra, simbolizando eventualmente o novo patamar da inteligência. Tudo isto ressoa às experiências enteogénicas tantas vezes relatadas pelos gurus da cultura dos psicotrópicos alucinogénios e, tendo em conta, a época do filme, reflectiria com certeza as aspirações de uma geração.



A sequência “Star Gate” é acompanhada por uma banda sonora também ela extraordinária e que consiste numa mistura de três obras do compositor húngaro György Ligeti: Requiem para soprano, mezzo-soprano, dois coros mistos e orquestra; Atmosphères, uma obra de 1961 para orquestra completa; e ainda Aventures, de 1962, para 3 vozes e 7 instrumentos, ligeiramente alterada para a banda sonora do filme.

L’Amérique hypnagogique de Baudrillard

“Aproximar outro universo, outro tempo, outro mundo. Receber as imagens de uma utopia estranha que, incessantemente, oscila entre sonho e realidade.” Assim é descrita a experiência da leitura de “L’Amérique” de Jean Baudrillard, na contra-capa da sua edição francesa. E, com efeito, ler este livro é como viajar, através de uma estética do fascínio, da sideração e da alucinação conceptual do semiólogo francês, por uma paisagem heterotópica e hipnagógica da América, simulada, como num mapa inventado por Borges à escala 1:1, pela semiose auto-imune de Baudrillard, onde o referente desaparece por detrás da aglutinação entre o significado e o significante.

É o próprio que se refere à sua experiência deste modo: “A América não é nem um sonho, nem uma realidade, é uma hiperrealidade. É uma hiperrealidade porque é uma utopia que desde o início foi assumida como realizada. Tudo aí é real, pragmático, e tudo nos torna sonhadores. Talvez a verdade da América apenas possa aparecer a um europeu, já que apenas ele encontra aí o simulacro perfeito, o da imanência e da transcrição material de todos os valores. Os americanos, eles, não têm nenhum sentido da simulação. Eles são a sua configuração perfeita, mas não têm a linguagem desta, na medida em que são eles o seu modelo.”
O livro editado em 1986, depois de uma viagem e estadia nos Estados Unidos, parece o registo escrito de um delírio hiper-lúcido, provocado pela sobre-estimulação sensorial e intelectual do sociólogo, exposto a uma visão estranhamente familiar de um país cuja memória antecede e antecipa a sua experiência possível, ao ponto de fazer com que a realidade pareça imitar a sua representação. Contemporâneo do crescimento exponencial da digitalização e mediatização do real, o país surge-lhe, então, assim: “A América é um gigantesco holograma, no sentido em que a informação total está contida em cada um dos seus elementos. Tome-se a mais pequena estação de serviço no deserto, ou uma qualquer rua de uma cidade do Middle West, um parque de estacionamento, uma casa californiana, um Burger King ou um Studebaker, e obtém-se toda a América, a sul, a norte, a este como a oeste. Holográfica no sentido da luz coerente do laser, homogeneidade dos elementos simples conduzidos pelos mesmos feixes. Do ponto de vista visual e também plástico: temos a impressão de que as coisas estão feitas de uma matéria irreal, que elas giram e se deslocam no vazio como por um efeito luminoso especial, uma película que atravessamos sem nos apercebermos.

Com certeza o deserto, mas Las Vegas, a publicidade, e também a actividade das pessoas, public relations, electrónica da vida quotidiana, tudo se recorta com a plasticidade e a simplicidade de um sinal luminoso. O holograma está próximo do fantasma, é um sonho tridimensional, e podemos nele entrar como num sonho. Tudo se prende com a existência do raio luminoso que transporta as coisas; se ele é interrompido, todos os efeitos se dispersam, e também a realidade. Ora, temos bem a impressão que a América é feita de uma comutação fantástica de elementos semelhantes, e que tudo se mantém apenas no fio de um raio luminoso, de um raio laser que conduz sob os nossos olhos a realidade americana. O espectral aqui não é o fantasmal ou a dança dos espectros, é o espectro da dispersão da luz.”

Escrita, assim, no limiar entre uma descrição alucinada de quem ainda não saiu verdadeiramente da “viagem” – real ou sonhada – e a flutuação conceptual de quem já desliza na superfície de uma banda de Moebius feita de néon fluorescente, como o surfista de uma topologia pós-euclidiana, a América de Baudrillard é a perspectiva psicadélica da modernidade instalada no décimo terceiro piso inacabado da pirâmide na nota do dollar americano. Vanishing point…
“Highway” foi o nome da peça de Noah Creshevsky que acompanhou o fundo desta crónica, e “Strategic Defense Initiative” (composta em 1986) a que escutámos logo de seguida. Elas representam aquilo a que o compositor americano chamou de “hiper-realismo musical”, ou seja, “uma linguagem electro-acústica construída com sons encontrados num ambiente partilhado, manipuladas de forma exagerada ou intensa”.