Fumeux fume (Solage)

O fumador fuma através do fumo
Uma fumegante especulação.
Enquanto outros fumegam pela cabeça,
O fumador pelo fumo fuma,
Pois muito lhe agrada o fumo,
Enquanto se esfuma a sua intenção.
O fumador fuma através do fumo
Uma fumegante especulação.

Esta seria uma tradução possível e decerto, por isso, uma traição de um poema francês dos finais do século XIV, que chegou até hoje através do Codex de Chantilly, que recolhe uma série de composições musicais – baladas, rondeaux, virelais e motetos - da época da Ars Subtilior, onde se inclui este rondeau do compositor Solage, que escutamos já em fundo. O estilo complexo e refinado das composições, com um bizarro sistema de notação, fez desta arte “a mais subtil”, como o nome que mais tarde recebeu o indica e terá sido cultivada e escutada por uma elite letrada, nos meios urbanos de Paris e Avignon, na segunda metade do século XIV. Ainda hoje surpreende o elevado grau de sofisticação das composições e, particularmente nesta, de Solage, não deixam de soar bizarros e experimentais os maneirismos que a sua interpretação exige. Mas mais desconcertante é a letra que rivaliza, na sua estranheza, com as extravagâncias da música. Quem foi ou quem eram esses “fumeux” de que ela fala e que fumo fumariam num tempo que antecede o regresso de Colombo, trazendo consigo o tabaco das Américas, em mais de um século? Não se tratando de tabaco, seria possível que se tratasse do fumo de hashish ou de ópio, numa qualquer moda orientalizante trazida do reino de Preste João?


Não deixa de ser tentadora para a imaginação de um coleccionador de bizarrias, no século XXI, a ideia de uma psicadélia tardo-medieval, ao escutar os complexos melismas e os efeitos cromáticos que parecem traduzir um certo entorpecimento ou, pelo menos, alterações das faculdades expressivas do cantor, poeta ou personagem alvo desta alegada sátira. E é verdade que as palavras repetidas induzem facilmente esse sentido de uma intoxicação pelo fumo inalado. Mas será difícil com a escassez de testemunhos documentais e a dificuldade de acesso a um objecto, datando de quase sete séculos, descobrir o verdadeiro significado daquelas palavras. Alguns estudiosos do assunto especularam sobre a hipótese de a música ser uma sátira dirigida a um grupo de intelectuais tonitruantes, a que o poeta Eustache Deschamps teria aludido num outro poema – “La Chartre des Fumeux” -, do qual ele seria a principal figura, o tal “Fumeux” do rondeau. O grupo seria conhecido pela sua jactância e pelos seus hábitos boémios, pelo seu histriónico inebriamento literal e espiritual. As palavras “fumeux” e “fume” poderiam, de facto, traduzir uma intoxicação voluntária praticada pelos membros do grupo, mas poderiam, tão somente, referir-se a um humor característico – um quinto humor que se acrescentaria à teoria dos humores herdado da antiguidade – do temperamento do dito “Fumeux”, que deitaria fumo pela cabeça de tanta introspecção.

Independentemente de todas estas especulações, vale a pena escutar, depois desta do Ensemble P.A.N. (1989), uma outra interpretação deste “Fumeux fume” pelo Early Music Consort of London (gravado em 1973) e, finalmente, uma balada do compositor Hasprois – também conhecido como Johannes Symonis – que também se encontra no Codex de Chantilly e que se chama “Puis que je suis fumeux”, referindo-se também ao tópico de Solage.

The Decayes – “Ich bin ein spiegelei” (1978)

E agora algo completamente diferente: “Ich bin ein spiegelei” – ou eu sou um ovo estrelado. Mas o disco desta semana não é absurdo e, no entanto, a lógica do seu sentido é análoga a certos processos radioactivos de decaimento, desintegrando-se o seu núcleo através da emissão de energia em forma de radiação, sendo, ainda, certo que o seu centro magnético se desvia angularmente do centro real como a declinação magnética do norte numa bússola. E o seu humor, como o próprio nome indica, é desconcertante e estrela-se como um ovo na sertã. Até agora a apresentação deste projecto pode parecer demasiado obscura, mas não é nem de perto tão enigmático e inapreensível como a própria banda. Estamos a falar de The Decayes e do seu arguível primeiro LP “Ich bin ein Spiegelei”, editado em 1978 pela Imgrat Records, apenas com 100 cópias numeradas à mão, inseridas em capas todas diferentes, também estas pintadas à mão.



Dado o carácter elistista e propositadamente obscurantista do grupo, a pouca informação disponível parece ser meramente especulativa e o facto de existir um site oficial da banda é apenas uma falsa esperança, já que o sentido de humor obscuro e sem sentido dos The Decayes nele se espelha turvamente: prolixo em dados técnicos sobre os fenómenos de decaimento de ondas acústicas e marítimas ou prolífero em ligações para sites informativos sobre morcegos, muco e lampreias do mar, mas extremamente lacónico quanto à sua biodiscografia. Dados cruzados permitem, no entanto, ligá-los ao movimento experimental da costa oeste dos Estados Unidos, nos anos 70, e ao LAFMS, ou seja, ao Los Angeles Free Music Society, um conjunto de experimentadores musicais, inspirados pelo humor dos Mothers of Invention, mas também pelas inovações do free jazz galáctico de Sun Ra e pelas aventuras microtonais de Harry Partch. A improvisação é assim uma das marcas deste disco inusitado e por pouco inaudito. Apesar dos recursos parcos de uma produção caseira, tipicamente DIY (Do-It-Yourself), a sua liberalidade experimentalista resulta num pletórico discurso contínuo de efeitos acústicos e eléctricos originais. É fácil de perceber o que prendeu a atenção de Steven Stapleton neste conjunto bizarro e totalmente imprevisível.
O LP é constituído por apenas uma faixa em cada lado do vinil. No primeiro, Deur Müten, - e nem sequer nos aventuramos na tentativa de tentar perceber o significado desta expressão germano-flamenga – um clarinete ou talvez um saxofone imerso numa câmara aquosa de efeitos ecóicos e uma guitarra compõem o ambiente etéreo de uma ablução matinal ou de uma mera lavagem de roupa íntima, num alguidar minimal suspenso num arco-íris rileyano de ar curvo. È o que estamos a ouvir em fundo. O lado B, homónimo ao álbum, Ich bin ein Spiegelei, trilha-se primeiro entre as asperidades e rugosidades materiais do som do vinil e da fita magnética para se abrir a uma deriva psicadélica pós-industrial que percorre os interstícios de uma coluna de som, habitada como as paredes de um quarto pelos sussurros e murmúrios de uma guitarra supersaturada. É ela que vamos agora escutar.

(Crónica originalmente escrita para o Kosmos)

Bruce Haack, The Electric Lucifer (1969)


“O meu coração bate / electricamente / O meu cérebro computa / Programa-me // Eu sou complicado / Deixa-me ser / Sou novo / Programa-me // Esta viagem / a realidade / será minha, se tu / Me deixares ser // Eu sou amor e eu sou livre / Sou infante / Programa-me.” Esta é a letra de “Program Me” uma faixa incluída no disco The Electric Lúcifer de Bruce Haack e carrega como que uma auto-apresentação do excêntrico músico e inventor de instrumentos musicais, inspirado pelo peyote que foi tomando desde a juventude junto dos índios americanos com quem conviveu desde muito cedo e pelo espírito hippie da geração de sessenta que atravessava a América, com mensagens de esperança, transformação, mas também de contestação. O disco, editado pela Columbia Records, em 1969, é um disco conceptual sobre a guerra entre o céu e o inferno com a terra pelo meio. Como uma parábola contra a guerra do Vietnam e pela redenção dos homens, o álbum fascina mais pela bizarria instrumental e estrutural do disco – definitivamente eclético nos seus recursos – do que pelo conteúdo lírico, que ainda assim sobrevive pelo seu carácter abstracto e poético-metafísico.

Bruce Haack nasceu na fria província de Alberta, próximo das Montanhas Rochosas, mas do lado canadiano, numa geografia desolada e hostil, onde passou uma infância solitária e isolada. E, no entanto, isso terá por ventura estimulado a sua imaginação para preencher as horas de solidão, entretendo-se com as virtualidades sonoras do que o rodeava. Desde cedo revelou um bom ouvido musical, dando lições de piano a partir dos 12 anos de idade, mas a sua relação com os sons terá sido mais concreta do que abstracta, como demonstra o chumbo na entrada para a escola superior de música atribuída aos seus fracos talentos de notação musical. Formou-se em psicologia na Universidade de Alberta, em Edmonton, não perdendo a oportunidade de continuar a sua actividade de criativo músico, compondo bandas sonoras e música incidental para peças de teatro universitário, acabando por receber uma bolsa do governo canadiano para ir estudar na reputada Julliard School em Nova York. Aí começou uma longa amizada com o pianista Ted “Praxiteles” Pandel, com quem haveria de criar e produzir parte dos seus álbuns. Apesar de abandonar a disciplina da Julliard School passados 8 meses, Bruce não abandonaria de modo nenhum a sua carreira musical, bem, pelo contrário, continuando a compor música para teatro e dança, utilizando não só os instrumentos tradicionais, mas também uma panóplia de artefactos electrónicos e fita magnética para produzir o “novo” que apregoa em “Program Me”, aproximando-se de forma heterodoxa da estética da música concreta. Escreveu também algumas composições pop, mas que não lhe deram tanta notoriedade como as suas experimentações e invenções, durante os anos 60, as quais o levaram mesmo a participar em programas televisivos de renome, como o Tonight Show com Johnny Carson, onde exibia os seus brinquedos sonoros. Um dos que mais fascinou o público foi o Dermatron, um sintetizador ligado ao corpo de uma pessoa que permitia com o toque e o calor humanos produzir sons inauditos. Importante na sua carreira de músico e inventor foi a sua colaboração com a professora de dança para crianças Esther Nelson, criando música para crianças com propósitos educacionais e de formação musical, registada em vários discos da série Dance, Sing & Listen, nos anos 60. Para além dos instrumentos convencionais, Haack construía os seus próprios instrumentos electrónicos a partir de brinquedos que comprava nos mercados de rua, os quais adaptava para conceber moduladores e sintetizadores. A natureza inovadora das suas invenções atraíu a atenção de empresas, que o contrataram para fazer jingles de publicidades, ao mesmo tempo que lhe permitia promover a música electrónica. O empresário Chris Kachulis deu-lhe a conhecer a revolução musical psicadélica, onde os seus sons do outro mundo assentavam que nem uma luva. Com a influência do rock ácido e da ideologia do flower-power, criou, então, The Electric Lúcifer.



Deste disco, escutámos desde o início desta crónica “Super Nova”. Às suas próprias invenções, incluindo um protótipo de vocoder (que se pode ouvir na faixa “Electric to me turn”), juntaram-se os moogs e a voz do próprio Kachulis que patrocinou o projecto. Escutámos de seguida a faixa “Program Me” com cuja tradução iniciámos a crónica e depois “War”, que demonstram a motivação hippie do álbum mas também o ecletismo musical que o estrutura.

The Burroughs’ Soft Adding Machine

William Seward Burroughs I + William Seward Burroughs II / Soma: “Writing is fifty years behind painting”, disse Brion Gysin. / “Comecei a minha viagem na morgue com velhos jornais, dobrando e inserindo o jornal de hoje no jornal de ontem e teclando compostos a partir deles.” Uncle Bill. “Quando dobro o jornal de hoje e o coloco ao lado do jornal de ontem, também dobrado, e componho as imagens de modo a montar uma secção temporal, estou literalmente a regressar ao tempo em que leio o jornal de ontem, a viajar para trás no tempo, até ontem.” O calendário maya começa na data mítica 5 Ahua 8 Cumhu e desenrola-se, em ciclos solares, lunares e cerimoniais até ao fim do mundo. Em 1885, William S. Burroughs – o avô – inventava uma máquina de calcular que facilitava as operações dos contabilistas. Em 1966, William S. Burroughs – o neto – conseguia publicar, na Grove Press, a segunda edição de The Soft Machine que tinha menos 80 páginas do que a primeira edição de 1961. A “máquina mole” também permite juntar, acoplar e transferir-se, mas molda-se conforme o contentor. E as cores, vermelho, verde, azul e branco, desempenham um papel importante nessas viagens no tempo, mas é a apomorfina que permite tratar o excesso de adição, através da indução de fluxos orgânicos para dentro e para fora do corpo.



A linguagem é um vírus. Instala-se na mente como um alienígena para aí se incubar. As palavras replicam-se de modo intracelular e transferem-se, saltando de corpo em corpo, levando consigo outros significados para criar novos sentidos. As técnicas do cut-up e do fold-in usadas em The Soft Machine, The Ticket that Exploded e Nova Express, por Burroughs, na senda dos surrealistas e de Brion Gysin, são processos linguísticos infecciosos, que contaminam e são contaminados por textos alienados e alienantes. Assim foi concebido The Soft Machine que contou três edições, todas elas diferentes, ora na ordem dos textos que compõem a “novela”, ora no conteúdo dos textos seleccionados. As palavras e as frases percorrem as experiências alucinadas de um navegante psicotrópico como era William Burroughs, referindo-se sobretudo a temas que assombravam a vida do escritor, tal como a guerra entre os sexos, o abuso de drogas e as técnicas de controlo. Se no entanto for necessário encontrar um núcleo narrativo, ele aparece de forma mais clara no capítulo The Mayan Caper, onde um agente secreto conta como aprendeu as técnicas de viagem no tempo e de metamorfose do corpo usando tecido indiferenciado, para se infiltrar num grupo de pastores que usam o calendário maya para controlar trabalhadores escravizados num campo de produção de milho, de modo a subverter as suas técnicas de controlo – manipulando as imagens e os sons com a ajuda de ondas de rádio - e assim provocar a revolução e a queda do regime hierárquico. Os relatos estão cheios de alucinações que são projectadas de forma narrativa não-linear em imagens literárias na mente do leitor, o qual acaba por ser contaminado linguisticamente pelo livro.



O som que acompanhou em fundo esta crónica foi de uma peça composta, no início dos anos 60, por William Burroughs com o programador informático Ian Sommerville, intitulada “Silver Smoke of Dreams” e que usava uma outra técnica semelhante à dos cut-ups, o “drop-in”, onde aparentemente se inseriam fragmentos sonoros das suas vozes gravadas em fita magnética entre outros fragmentos vocais cortados. De seguida ficámos com uma outra peça, realizada por volta de 1965, pelos mesmos Burroughs e Sommerville, entre Nova York e Londres, com o nome “K9 was in combat with the alien mind-screens”, a qual ilustra sonoramente a técnica do cut-up usada na novela The Soft Machine.