Cronologia psicadélica (segundo capítulo)

Segunda parte da arqueologia sonora iniciada no programa anterior apresentando mais alguns episódios dos primeiros registos da música psicadélica.


Playlist, 30 de Outubro de 2008

Gerald Heard - "Survival, Growth & Ribirth" (Explorations, Vol. 2") 1961
Merry Pranksters & The Greatful Dead - "Levitation" (The Acid Test Reels, Vol. 1) 1966
Merry Pranksters & The Greatful Dead - "I'm a Hog For You Baby" (The Acid Test Reels, Vol. 1) 1966
Pink Floyd - "Astronomy Domine" (The Piper at the Gates of Dawn) 1967
The Id - "The Inner Sounds of the Id" (The Inner Sounds of the Id) 1967
The Deep - "Turned On" (Psychedelic Moods) 1966
The Deep - "Psychedelic Moon" (Psychedelic Moods) 1966
The Blues Magoos - "Tobacco Road" (Psychedelic Lollipop) 1966
Country Joe & The Fish - "Bass Strings" (Electric Music for the Mind and Body) 1967

A música visual dos irmãos Whitney

John & James Whitney – “Yantra” (1957), “Lapis” (1966) e “Permutations” (1966)

Uma luz branca e pura enche a tela uniformemente; para o seu centro, um número incontável de pequenas partículas começa a surgir, formando um anel progressivamente mais espesso que cerceia a luz num espaço circular cada vez mais apertado, mas mais intensamente luminescente, como um sol rodeado da sua coroa. O ecrã vê-se, então, subtilmente transformado numa mandala, num denso círculo cósmico constituído por inúmeras circunferências concêntricas em constante movimento e tecidas por formas geométricas complexas e em eterna transformação. As partículas escuras acabam por ganhar uma luminosidade própria que substitui definitivamente a tela branca transmudando a sua superfície numa espiral infinita de padrões floriformes, cristalinos e geométricos multicolores. A ondulante transformação dos padrões dá-se a um ritmo hipnótico, mas harmónico, criando no espectador uma combinação de impulsos cromáticos e intensidades radiantes que geram impressões sinestésicas, como se se tratasse de música visual.



[James Whitney, "Lapis" (1966)]

Aparentemente, era disso mesmo que se tratava nestes bailados luminosos de figuras geométricas que constituiram os filmes de James e John Whitney, dois irmãos que se dedicaram desde os anos 40 ao cinema experimental, ou “visionary film” - para usar a expressão de Adams Sitney -, tendo por base uma formação artística e musical sólida, ligada, nomeadamente, à vanguarda serialista schöenbergiana. Apesar de terem trabalhado conjuntamente em alguns filmes, James denunciava a sua vocação de pintor ou artista visual no modo mais artesanal com que elaborava os seus próprios filmes, designadamente “Yantra” de 1957, no qual trabalhou durante quase dez anos até estar em condições de ser projectado. No filme seguinte, “Lapis” (1966) do qual acabei de fazer uma breve descrição, James demorou apenas três anos graças ao computador analógico desenvolvido pelo irmão que lhe permitiu acelerar o processo de captação de imagens por uma máquina de discos rotativos, cujos movimentos eram controlados pelo referido computador. No entanto, as chapas tinham ainda sido pintadas manualmente. Tanto “Yantra” como “Lapis” foram inspirados pelos interesses de James Whitney na meditação yoga e nas sabedorias orientais, pelo que, tanto um como outro, são autênticos mandalas dinâmicos construídos, tal como os filmes de Jordan Belson, com um propósito meditativo e de libertação da mente. Não é pois de estranhar que, mais tarde, se tenha adicionado uma raga indiana de Ravi Shankar, como banda sonora para um filme que era originalmente mudo. O mesmo tipo de banda sonora foi acrescentado a “Permutations” (1966), o filme de John Whitney, constituído por séries de pontos organizados em padrões diversos que interagem entre si como um novo tipo de alfabeto formal, de modo a criar uma nova linguagem poligráfica que ressoa os fenómenos polifónicos e de contraponto da música. É este aspecto sinestésico que o aproxima esteticamente dos filmes do irmão mais novo. Porém, este filme de John Whitney pertence já a uma nova geração, na medida em que as imagens são agora inteiramente de origem informática, com a ajuda do seu computador e de um monitor monocromático da IBM - empresa para a qual ele começara a trabalhar -, sendo as cores posteriormente editadas com a ajuda de uma impressora óptica.



[John Whitney, "Permutations" (1966)]

Não se sabe se os filmes dos irmãos Whitney foram inspirados por alguma experiência psicadélica induzida por alucinogénios, no entanto, não é difícil ligá-los à cultura californiana onde tais experiências se multiplicavam. O conteúdo orientalizante das criações de James Whitney e a importância que atribuía ao efeito meditativo e de expansão da consciência é comum a todo um ambiente que se vivia em São Francisco, onde os seus filmes haviam sido projectados, durante os Vortex Concerts, ao lado de obras de Harry Smith e de Jordan Belson. Este último cineasta experimental, que colaborou de perto com James Whitney, confessou ter experimentado LSD e mescalina, e os efeitos dessas experiências encontrariam expressão em alguns dos seus filmes. Já será mais difícil ligar o trabalho do pioneiro da animação computorizada, John Whitney Sr, com a cultura psicadélica, no entanto, os seus filhos, uma 2ª geração de criativos cineastas experimentais que herdaram o nome Whitney, estiveram ligados à preparação de palcos de concertos, nomeadamente, dos Grateful Dead e do lendário Festival de Monterey, onde foram responsáveis pela projecção de animações computorizadas em vários ecrãs, simultaneamente, cujo conteúdo visual e sinestésico era muito próximo dos círculos centrípetos e centrífugos do pai e das revoluções de mandalas cósmicos do tio.





[James Whitney, "Yantra" (1957)]

Para mais informações sobre os filmes visionários dos irmãos Whitney, pode consultar-se o livro de Gene Youngblood, disponível online: Expanded Cinema (1970); e a apresentação de William Moritz sobre James Whitney.

Nature boy


Eden Ahbez – Eden’s Island (1960)

Eden’s Island oferece-nos a banda sonora de uma ilha encantada como o caminho paradisíaco rumo ao amor e à felicidade. Um lugar onde reina a comunhão entre o Homem e os animais e belezas paisagísticas, que se auto-sustenta de melodias e canções lounge e easy-listening. Um chamamento celestial de um Eden Ahbez deusificado, com barbas e longos cabelos loiros olhando o infinito, a salvo de um mundo materialista onde o consumismo desenfreado dos anos pós-guerra viu Ahbez acampar debaixo do primeiro “l” da faustosa Hollywood sobre uma Los Angeles que, ainda, o viu ignorar a conta bancária amealhada com a notoriedade conseguida pela composição do grande êxito de Nat King Cole, “Nature boy”, em 1948, e viver com a sua família pelas ruas. Uma brisa tropical feita de intrincados arranjos de instrumentação exótica a la Martin Denny, onde não faltam as congas, bongos, flautas, piano e sons do mar e de animais, bem como as leituras dos próprios escritos de Ahbez – nascido Alexander Aberle em Nova Iorque e de nome George McGrew após a sua adopção por uma família do Kansas – altamente influenciados pela cultura beat da época.
“Eden’s Island” pode encarar-se como um manifesto proto-hippie a uns bons anos da sua eclosão, metaforizando o encantamento de uma ilha cuja insularidade revelará não apenas a consciência ecológica, o deleite ocioso e os encantos do amor e do romance, como territórios filosóficos e místicos evocativos de equilíbrios entre o Homem e o meio como modo de alcançar níveis elevados de uma auto-consciência profunda e transformadora. Será esta conceptualização que faz deste disco um dos pontos de paragem na análise ao período embrionário da música psicadélica.

O Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras

Numa primeira fase, mergulha-se. Como quem cai numa profunda toca de coelho ou como quem se deixa adormecer. A consciência distende-se e o corpo relaxa. A lógica inverte-se: o profundo vem à superfície e o sono transforma-se em vigília. Do vazio nasce uma pletórica profusão de alucinações. E entra-se na segunda fase, onde a consciência se expande e o corpo perde os seus limites. Por um paradoxo do tempo nessa consciência alargada, faz-se coincidir o passado e o futuro num presente intenso e eterno. Ao mesmo tempo que o longíquo se torna próximo e o exterior se reproduz e multiplica no interior. Cornucópias de sons e de cores dançam num bailado sinestésico que cria formas ainda sem nome e movimentos que procuram os seus verbos. Finalmente, o ego renasce desta ablução espiritual, para voltar ao contacto com a realidade do quotidiano.

Esta divisão trifásica é a análise esquemática mais elementar e simplificada de uma experiência psicadélica, como a descreve Timothy Leary, o famoso guru e promotor das virtudes do L.S.D., juntamente com os seus colegas do Harvard Psilocybin Project, Ralph Metzner e Richard Alpert, no disco de 1966 – “The Psychedelic Experience”, do qual ouviremos daqui a pouco um excerto. No entanto, os próprios autores desse manual, baseado no Livro dos Mortos Tibetano, advertiam para o facto de o L.S.D., a mescalina ou a psilocibina serem somente chaves químicas que potenciam, pelos efeitos neurológicos que produzem, uma experiência de expansão da consciência que tem uma natureza essencialmente psicológica, ou, para seguir o termo já inventado pelo psiquiatra britânico, Humphrey Osmond, psicadélica, isto é, uma experiência em que o espírito se manifesta, se torna claro e evidente. Outras práticas, oriundas de tempos imemoriais e espalhadas pelos vários continentes, proporcionaram experiências semelhantes, desde as rigorosas asceses dos monges orientais, aos transes dos rituais xamanistas dos ameríndios, passando pelos êxtases e delírios dos místicos e das religiosas ocidentais. Tais experiências exerceram um fascínio tal sobre pensadores, escritores, cineastas, músicos e pintores que os levou a procurarem modos de experimentar essas viagens da consciência, fosse participando nos rituais, nas meditações e asceses ou ingerindo substâncias indutoras desses estados em que a percepção do mundo se altera. Delas resultou a transformação e promoção das suas criações artísticas.

Estas crónicas visitarão algumas curiosidades, alguns fragmentos arqueológicos, testemunhos e registos dessa cultura e contra-cultura psicadélica, que contribuiram para enriquecer e diversificar as formas de ver o mundo. Dessas experiências estéticas, gnoseológicas e mesmo religiosas que, desde os desertos da Califórnia ou do México às pequenas salas de estúdio de Paris ou laboratórios químicos na Suíça, mostraram novas perspectivas sobre a mente dos homens, ouviremos neste programa alguns documentos sonoros.


Para a primeira destas crónicas, escolheu-se o já referido disco, editado em Agosto de 1966, e gravado pelos três cientistas empenhados em promover os benefícios espirituais e terapêuticos da experiência psicadélica através do uso de L.S.D., mescalina ou psilocibina. O disco consiste basicamente numa leitura adaptada do respectivo livro “The Psychedelic Experience”, escrito dois anos antes, com o propósito de fornecer instruções para sessões experimentais que envolvessem drogas psicadélicas, visando uma viagem transcendental de auto-descoberta. Esse manual inspirava-se por sua vez no livro vulgarmente conhecido como Livro dos Mortos Tibetano mas que na verdade se chama “Bardo Thodol”, ou seja, “Libertação pela audição durante o estado intermédio” (i. e, aquele que medeia o momento da morte e o do renascimento, na tradição oriental da transmigração da alma). Adaptando os ensinamentos do ritual fúnebre tibetano que esse livro descreve, Timothy Leary e os seus colegas dividem a experiência psicadélica em três fases – Chikhai Bardo ou fase da transcendência completa, onde se dissolve a linguagem conceptual, a percepção do tempo e do espaço e o sentimento de si, ou seja, uma fase de abandono e despojamento que corresponde à morte do eu; Chonyid Bardo, a fase mais longa em que a consciência está num estado de alerta e de velocidade supremos, onde as visões delirantes são alucinações ou “aparições kármicas”; finalmente, Sidpa Bardo, é a fase do renascimento do ego, do regresso ao nosso mundo quotidiano. O disco está no entanto divido em duas partes, correspondentes aos lados do vinil: num primeiro, trata-se do “Going Out”, onde alternadamente Timothy Leary, Ralph Metzner e possivelmente Richard Alpert explicam a experiência, as suas fases e o que esperar delas; no lado B, é o “Coming Back” que desenvolve sobretudo os cuidados a ter com o regresso do eu à realidade de todos os dias.

O texto integral de "The Psychedelic Experience" pode ser lido aqui.

Cronologia psicadélica

As primeiras emissões do Laboratorio Chimico consistem, em parte, num trabalho de arquelogia sonora onde se procuram desvelar as primeiras gravações de música psicadélica. Alguns destes registos dificilmente se enquadram no estereótipo associado ao género musical popularizado durante os anos 60. Porém, se esta primeira viagem no tempo começou em 1957 com Gordon Wasson, ela acabou na madrugada do século XXI com Boredoms, já que estes programas vão percorrer geográfica e temporalmente todos os espectros da expressão musical psicadélica.

Playlist, 23 de Outubro de 2008

Gordon Wasson - "Chjon Nka..." (Mushroom Ceremony of the Mezatec Indians of Mexico) 1957
Gordon Wasson - "Chjon Nca Catsin" (Mushroom Ceremony of the Mezatec Indians of Mexico) 1957
Eden Ahbez - "Myra Bird" (Eden's Island) 1960
Eden Ahbez - "Banana Boy" (Eden's Island) 1960
Aldous Huxley - "untitled" (Speaking Personally) 1961
Allan Watts - "Metamatic Ritual" (This Is It) 1962
"O Pulsar Ciclotímico do Amola Tesouras" (Timothy Leary, The Psychedelic Experience)
Holy Modal Rounders - "Hesitation Blues" (Volume 1 &2) 1964
13th Floor Elevators - "You're Gonna Miss Me" (The Psychedelic Sounds of the 13th Floor Elevators) 1965
13th Floor Elevators - "Roller Coaster" (The Psychedelic Sounds of the 13th Floor Elevators) 1965
Boredoms - "Star" (Vision Creation Newsun) 1999
Boredoms - "Heart" (Vision Creation Newsun) 1999

Tune in...

Viagem radiofónica aos confins da experiência, de abrangência e conteúdo ilimitados, transcendendo conceitos e dimensões geográficas e temporais. A música será o segredo alquímico que abre a mente e liberta o sistema nervoso dos seus padrões e estruturas comuns.

Programa de uma hora de duração dedicado às várias expressões do psicadelismo na cultura humana. Da pintura à música, da antiguidade à modernidade, dos místicos aos químicos, numa conjunção proporcionada de elementos que potenciem a abertura de consciência à ciência e arte dos estados alterados de consciência.