Um repositório de memórias: a Pop Hipnagógica

Memórias, memórias de memórias, pseudo-memórias. Talvez nunca como hoje o underground musical norte-americano tenha lançado, tão descaradamente, o olhar, a mente e o corpo para os anos 80 do século passado. E, ao fazê-lo, resgatam a artificialidade hiper-real da cultura popular dessa década, criando uma música difusa, espectral, alucinada.
Hypnagogic Pop foi um termo cunhado recentemente pelo jornalista britânico David Keenan - que havia já estado por detrás de designações "novas", como a New Weird America. Keenan utiliza a expressão para descrever um conjunto mais ou menos heterogéneo de produções musicais, maioritariamente norte-americanas, cujas premissas assentam fundamentalmente na pop (mas não só), e que recuam à década de 80 - na qual os seus intérpretes terão nascido - para lhe irem buscar inspiração. Nomes como os The Skaters e alguns dos pseudónimos individuais dos membros do dúo, James Ferraro e Spencer Clark, como Lamborghini Crystal ou Balck Jocker, respectivamente, Ariel Pink, Sun Araw, Nite Jewel, Tickley Feather, Rangers, Gary War ou Ducktails, regurgitam fidedignamente o imaginário dos anos 80, transfigurando o real recorrendo ao do it yourself que sublima a nostalgia dormente e o desejo de partir.

A hipnagogia, ou as alucinações hipnagógicas, designam os estados que caracterizam o limbo semi-consciente situado entre o sono e a vigília, sobretudo presentes no adormecimento, e onde micro-fenómenos alucinatórios do tipo visual, auditivo e por vezes táctil podem ocorrer. É esta recuperação semi-consciente centrada numa parcela específica do passado que dá o mote para a pop hipnagógica, embora seja certo que qualquer estimulação vivida é passível de ser hipnagogicamente recriada, e que inputs visuais e auditivos ocupam a linha da frente para a reconversão subliminar, e ainda que por via da sua contextualização com a auto-referência dos seus intérpretes, qualquer criação musical pode considerar-se hipnagógica. Adiante, olhando e escutando de perto o que Keenan diz, ressalta a proximidade semântica à hauntologia proposta por Simon Reynolds, substituindo o brittish flavour pelo american style. Centrando-nos nas manifestações concretas do produto sonoro, descortina-se um espectro demasiado amplo no seu alcance (estilístico e temporal), que, não obstante a compreensão para com o esforço (necessário?) em criar grelhas de interpretação que funcionem como âncoras rumo a uma navegação minimamante orientada em mentes em risco de saturação por anseios melómanos, acaba por colocar no mesmo saco uma miríade de projectos que, apesar de evocarem o psicadelismo sob o manto difuso da memória refractada, o fazem recorrendo a formas e conteúdos tão díspares como a celebração da cultura trash por via declaradamente psicotrópica (The Skaters e afins), as visões tropicais e paradisíacas de Ducktails ou Sun Araw, o tédio suburbano de Rangers e da Underwater Peoples e seus derivados, a desconstrução da canção pelo ruído (Ariel Pink, Gary War ou Zola Jesus), os festins ácidos de Predator Vision, Magic Lantern ou Antique Brthers, revisitações surf (Super Vacations, Real Estate ou Best Coast), ou através da reconversão da new age/kösmische como catalisador de viagens cósmicas de passageiros como Oneothrix Point Never, Infinity Window ou Emeralds.

Parece contudo incontornável que o underground norte-americano actual está a reinterprar o som de outra época. Muitas vezes com parcos meios e produção barata, o som com baixa fidelidade fetichiza o material com que por essa mesma altura as franjas sonoras mais extremas faziam valer-se - muitos dos registos são lançados em cassete, há uma saturação visual celebratória nos vídeos de alguns temas, e o artwork idolatra o preto-e-branco fotocopiado. A sonoridade distingue um miasma que reenquadra as marcas distintivas dos anos 80: a profundidade dos teclados, as linhas de baixo em slow motion, o ruído empoeirado da fita magnética e uma saturação estereofónica de efeitos, que recriam atmosferas fumarentas sob o sgno da bola de espelhos, ou simplesmente, os ritmos pós-modernos da vivêcia suburbana.
Há uma marca sintética vinda do mainstream, e cuja artificialidade se evidencia lado a lado com a nostalgia e com o desejo de epifanias suspensas pela latência infantil. O que resulta em magia displicente, entre o cool e o foleiro, desembocando num reconhecimento estranho.


MATRIX METALS "FLAMINGO BREEZE, PART 4" from OLDE ENGLISH SPELLING BEE on Vimeo.


Neste dia ouviu-se no Laboratorio Chimico:

Ducktails - Lundrunner (Landscapes, 2009)
Rangers - Bean Crick (Suburban Tours, 2010)
Lamborghini Crystal - Video Head Cleaner (Dial 747 Creepozoid, 2007)
James Ferraro - II (Clear, 2009)
Ariel Pink - Gettin' High in the Morning (House Arrest, 2006)
Gary War - See Right Through (Horribles PArade, 2009)
Sun Araw - Horse Steppin (Beach Head, 2008)
Rangers - Golden Triangle (Suburban Tours, 2010)
Crónica O Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras - L'Amerique Hypnagogique de Baudrillard

Podcast brevemente.

Portuguese Psych Fest

O Laboratorio Chimico dedicou as emissões de 25 de Fevereiro e de 4 de Março a percorrer sons psicadélicos portugueses, desde os nuggets - as primeiras incursões de grupos nacionais pelo surf-rock , beat e garage na década de 1960 e primera metade da década de 1970 -, até alguns dos múltiplos projectos que desde há uns anos pululam pelos recantos mais marginais do underground nacional.
Começámos pelo presente e pelo destaque às músicas de expressão livre, periférica, que alguém apelidou de "um dos segredos mais bem guardados da costa oeste europeia". A denominação de "música exploratória portuguesa" pode ser uma herança do defunto "Atlantic Waves" de Miguel Santos, em Londres, mas a verdade é que esse cunho se mostra ao mesmo tempo lato e preciso para incluir tudo sem apontar trajectórias estanques. Tal parece ser o mote para que grupos como os Frango, Os Loosers, Tropa Macaca - este trio talvez a constituir a matriz nuclear a partir da qual a expansão criativa depois se consolidaria até outras coordenadas -, mas também Fish & Sheep (entretanto desmantelados), Gala Drop, Osso (e seus derivados), Branches, Sapiens Sapiens, Dopo ou One Might Add, entre outros, fossem emergindo, sensivelmente a partir do meio da década do novo milénio. Combinaram empreendorismo e energia criativa através de sinergias pessoais, associativas e comunitárias, cujos sinais mais evidentes são a desmultiplicação de alter-egos que permitem explorar diferentes abordagens, mas, igualmente, editoras e netlabels (casos da defunta Merzbau, a Searching Records, Ruby Red ou a Test Tube), associações como a Out-Ra (do Barreiro), a Filho Único ou a A9))) (de Leria), e também espaços que regularmente acolhem concertos (de que a ZdB, em Lisboa, e o Passos Manuel, no Porto, serão os mais emblemáticos), e eventos que começam a ter alguma visibilidade pela regularidade de boas propostas que trazem - o Out-Fest, no Barreiro, vai já num punhado de edições em que, aos nomes nacionais já referidos, se juntam inquestionáveis nomes vindos de outras paragens, casos dos The Skaters, Ducktails, Spectrum, William Basinsky, Chris Corsano, Wolf Eyes, Uton ou Whitehouse; por outro lado, são frequentes os contactos com músicos que actuam em Portugal e que potenciam colaborações futuras e parcerias em tournées (casos de Excepter, Acid Mothers Temple, Damo Suzuki, Valerio Cosi ou Mattew Valentine e Erika Edler). Na génese do som que apresentam está um espírito faça-você-mesmo que expande os territórios convencionais do rock ou pós-rock até (des)construções estilísticas por vezes difíceis de descortinar, mas que assentam na convicção de que a improvisação e o risco podem ser uma viagem de pendor altamente psicotrópico.

Mas o destaque à música psicadélica portuguesa levou-nos a recuar até à década de 1960. Tal como um pouco por todo o lado, os primeiros passos do rock português assentaram na replicação (e, nalguns casos, no decalque) de sons e ritmos estrangeiros que conseguiam furar a cortina isolacionista da ditadura. Nessa época os portugueses estariam mais sensibilizados ao fado e à música ligeira, e o débil mercado discográfico raramente contemplava nomes internacionais, exceptuando alguns títulos espanhóis e franceses. Mas foi o rock and roll anglo-saxónico que mais agitou os jovens músicos portugueses. A sua popularização terá começado no final da década de 50, quando chegavam vindos do outro lado do Atlântico alguns discos, trazidos sobretudo por marinheiros, enquanto que nos cafés lisboetas podia dançar-se ao som das jukebox com hits de Bill Haley and the Comets, Little Richard ou Elvis Presley. Por essa altura o panorama musical português entretinha-se com o fado e com a música ligeira, mas começavam a aparecer nomes como Joaquim Costa (aka "Elvis de Campolide"), José Manuel Silva (aka "Baby Rock"), Vitor Gomes, ou José Cid.

Com a explosão, jé em plena década de 60, dos fenómenos The Beatles, The Rolling Stones e The Beach Boys, distribuidoras multinacionais chegam a Portugal. A satruração do mercado discográfico e os bolsos vazios dos jovens portugueses fez com que emergissem várias bandas ávidas por mimetizar esse "novo som" e fazer versões de temas internacionais para animar bailes e concursos, que nalguns casos tornar-se-iam mais conhecidos que os próprios originais, com forte cunho beat, garage e surf rock, numa moda que se estendeu até às ex-colónias. O Quarteto 1111 terá sido o mais proeminente grupo rock português desta época, tendo visto o seu primeiro álbum censurado e retirado do mercado. À medida que os ouvidos portugueses eram invadidos por Led Zeppelin, Deep Purple ou Jimi Hendrix, e que alguma contestação face à situação socio-cultural do país se agitava, alguns grupos musicais ganharam maior acutilância, introduzindo laivos de experimetalismo e psicadélia nas suas produções, a par de maior consciencalização política. Este aspecto, contudo, não adquiriu as proporções de outras paragens, e nunca se concretizou num "movimento" sustentado, ficando a energia revolucionária de costumes e atitudes atrofiada na plácida designação de música "yé-yé". As sementes estavam lançadas, e já na década de 1970 surgem projectos conotados com o rock progressivo que trilham caminhos psicadélicos, casos de Petrus Castrus, Plexus, José Cid ou Evolução.


Mas das vagas de emigração a que Portugal assistiu havia de sair uma excitante experiência auditiva, destacada no Laboratorio Chimico, ainda que decerto poucos tenham sido os que em 1969 tiveram acesso ao disco em terras de Salazar e Caetano. António e Fernando Lameirinhas, irmãos nascidos no Porto e que cedo emigraram para a Bélgica e Holanda, fizeram carreira musical enquanto Move ou Jess & James, versando ritmos beat e garage, que lhes valeu alguma visibilidade. Mas foi com projecto de versão única intitulado The Free Pop Electronic Concept que entraram para o extenso rol de preciosidades psych que de tempos a tempos são desenterradas do esquecimento para deleite do melómano. Certamente influenciados pela vertigem provocada pela audição de discos que juntavam o hedonismo pop-rock com o crescente acesso às técnicas de estúdio na produção - incorporando-o enquanto instrumento -, casos dos norte-americanos Fifty Foot Hose ou United States of America, ou dos jerks electrónicos com que Pierre Henry inundava o rock de Michel Colombier em Messe Pour les Temps Presents, os irmãos Lameirnhas juntaram-se a Scott Bradford (teclados) e a Stu Martin (bateria) e, acima de tudo, ao compositor belga Arsenne Souffrian (o responsável pelos efeitos de electrónica), para gravarem A New Exciting Experience, originalmente lançado em 1969 na Pallete (Bélgica) e na Ace of Clubs (Canadá). O desregramento sensorial que a adição de electrónica proporciona à estrutura maioritariamente pop do disco, confere-lhe a sugestão lisérgica em toada festiva e celebratória, que se agita por entre a experimentação sónica avulsa. A New Exciting Experience foi reeditado em 2008 pelo selo catalão Wha Wha Records, depois de o mesmo ter acontecido na espanhola Belter e na italiana Durium.

A 25 de Fevereiro ouviu-se:

Os Loosers - At the Foot of the Sphinx (7 '' split com Owl Xounds, 2008)
Sapiens Sapiens - Antes Ratos (Seiva, split com Osso e Branches, 2007)
Frango - Amigo da Asa Branca (Nada Miles, 2008)
Tropa Macaca - Canos Serrados (Sensação do Princípio, 2010)
Gala Drop - Frog Scene (Gala Drop, 2008)
One Might Add - Beat Matters (Sailing Team, 2007)
Fish & Sheep - Keiji Haino Haircut (Double Banana, 2006)
Manuel Gião - Cinco (Cima, 2007)
Dead Hawaian - s/t (Dead Hawaian, 2009)

E a 4 de Março:
Portuguese Nuggets Vol. 1: A Trip to 60´s Portuguese Beat, Surf and Garage:
Tártaros - Tartaria
Quinteto Académico - Train
Daniel Bacelar - Tema dos Gentleman
Conjunto Ruy Manuel -Fuga
Qarteto 1111 - Bissaide
Portuguese Nuggets Vol. 2:
Tártaros - Oh! Rosa Arredonda a Saia
Os Ekos - O Espelho
Os Vodkas - San Francisco Girls
Psychedelic Portugal: Hard Psych and Progressive Sounds From Portugal Underground Scene 1968 - 1974):
José Cid - A Viagem
Petrus Castros - Batucada Vulgaris
Plexus - Paraíso Amanhã
The Free Pop Electonic Concept (A New Exciting Experience, 1969)
Chewing Gum Delirium
Cosmos Rhythms
Theme no 1

Podcasts brevemente.

The Deep Self (John C. Lilly)


Nos anos cinquenta, havia um certo número de neurofisiólogos (sobretudo dos que estudavam os fenómenos do sono, nomeadamente, Frédéric Bremer e Horace Magoun) que defendia que o cérebro humano apenas se mantém acordado devido aos estímulos incessantes do mundo exterior que lhe chegam através dos órgãos receptores do sistema nervoso periférico, ou seja, se cérebro deixasse de ser estimulado entraria num estado de adormecimento. John C. Lilly, um dos investigadores do National Institute of Mental Health, decidiu fazer uma experiência, em 1954, para falsificar a teoria daqueles cientistas, inventando um tanque de isolamento ou de privação sensorial onde o sujeito da experiência (na verdade ele próprio) ficava a flutuar em água isolado e com estímulos sensórios exteriores muito reduzidos. No início a experiência exigia o uso de máscaras e estratégias para que o corpo não se afundasse, mas mais tarde, começou a usar-se sulfato de magnésio ou sais de Epsom, tornando a solução aquosa densa o suficiente para manter os corpos a flutuar e com a cabeça à superfície, dispensando o uso de máscaras. Segundo o próprio inventor do dispositivo, a experiência provou que o cérebro se mantinha num estado de vigília, falsificando a teoria oposta, e que, para além disso e depois de se ultrapassarem os receios e preocupações iniciais, a flutuação num ambiente sem som, sem luz e quase sem gravidade, isto é, com um nível quase nulo de estimulação sensória, proporcionava estados alterados da consciência, viagens introspectivas de auto-descoberta, quase terapêuticas, onde a consciência apesar de se manter em controlo se deixava levar como que para fora do corpo e descobrir novas dimensões não exploradas da nossa inteligência, através de alucinações induzidas e conduzidas.


John C. Lilly era um médico que estudou inicialmente física e biologia no California Institute of Technology, depois, para além do curso de medicina, teve uma formação em psicanálise, dedicou-se à neurofisiologia, no já referido NIMH, à biofísica, à informática e inteligência artificial, inventando as teorias sobre o biocomputador humano e a auto-metaprogramação e iniciando nas Ilhas Virgens uma série de experiências de comunicação com golfinhos, focando-se, durante toda a sua vida, nas questões da consciência e do cérebro. Conheceu Timothy Leary e cedo ficou familiarizado com as experiências com psicotrópicos, mas apenas começou a experimentar o LSD – “pure Sandoz”, como chamavam ao LSD25 puro criado pelo famoso laboratório suíço – no início dos anos 60. Registou essas experiências com o ácido lisérgico dietilamida num livro famoso, editado em 1973, chamado The Center of the Cyclone – an autobiography of the inner space, onde um dos capítulos relata o uso de LSD em sessões de meditação no tanque de isolamento, durante o seu período nas Ilhas Virgens. Como era de esperar, os efeitos alucinogénios foram potenciados pela indução da substância psicotrópica, mas alegadamente, devido ao seu treino prévio, tanto na área da psicanálise como nas outras áreas científicas, as experiências produziram resultados muito generosos no domínio da auto-descoberta, mas também no do auto-conhecimento dos limites da consciência através do contacto real ou alucinado com entidades de inteligência superior. Interessado ainda pela filosofia oriental, muito em voga na época, estou yoga e relacionou essas experiências com estados místicos de meditação avançada, denominadamente, o Satori-Samadhi que ele alega ter atingido.



Para além da sua invenção do tanque de isolamento, a qual se tornou bastante popular e foi experimentada por personalidades de áreas muito diversas, desde o físico Richard Feynmann, o filósofo Gregory Bateson, Robert Anton Wilson, o artista Alejandro Jodorowsky até ao co-piloto de Timothy Leary nas experiências com LSD Ralph Metzner, John C. Lilly ficou muito associado com o seu trabalho com golfinhos e a esperança na comunicação futura com esses mamíferos marinhos. Escutámos durante a crónica um excerto de um disco editado em 1994 sob o título E.C.C.O., que significa Earth. Coincidence. Control. Office. e consiste numa mistura de gravações feitas pela Sound Photosynthesis em homenagem a John Lilly e à sua crença numa força invisível, numa entidade superior que controla as coincidências da vida quotidiana, a noosfera e a evolução humana. Este vídeo contém precisamente a voz de John C. Lilly incluída nesse projecto.

Connaissance par les gouffres (Henri Michaux)


No início desta crónica emitida no dia 11 de Março de 2010, ouviram-se as palavras ditas por Henri Michaux numa espécie de Preâmbulo ao filme “Images d’un Monde Visionnaire” de 1964, um filme educacional (para não dizer científico) sobre os efeitos alucinogénicos induzidos pela ingestão da mescalina e do haxixe num paciente, realizado por Henri Michaux e Eric Duvivier e produzido pelo laboratório farmacêutico suíço Sandoz – responsável pela síntese do LSD em 1938. O filme consiste numa sequência de imagens de vários tipos, manipuladas por diferentes dispositivos técnicos disponíveis na época, com vista a produzir efeitos visuais de alucinação, semelhantes aos que se vêem desfilar na mente de um sujeito submetido à acção daquelas substâncias psicotrópicas. Acompanhado pela música de Gilbert Amy e pela incidental intervenção da voz de Henri Michaux, o filme está dividido em duas partes, relativas respectivamente à influência da mescalina e do haxixe, acentuando as diferenças do tipo de visões induzidas por uma e por outra, apresentando as primeiras um carácter mais inefável e distorcido da percepção tradicional – alteração das formas, cores e dimensões, desmultiplicação da identidade dos objectos -; e as segundas correspondendo a uma sequência onírica de imagens sem aparente ligação lógica. Nesta segunda parte, o filme assemelha-se bastante a uma filme surrealista, estética a que Michaux não foi de modo nenhum alheio.



O escritor e pintor de origem belga havia na sua juventude começado a estudar medicina e sempre se interessara por escritos psiquiátricos relativos a experiências com doentes mentais. Sempre muito propenso a viajar e escrever diários de viagem, resolveu aos 55 anos empreender outro tipo de viagens e registar em texto e em desenho as suas experiências psicadélicas com a mescalina, o haxixe, a psilocibina e mesmo com o LSD. Estas experiências eram muito informadas pela leitura de tudo o que tinha conseguido arranjar sobre o assunto: para além dos estudos científicos, a leitura de Thomas de Quincey, Aldous Huxley ou Antonin Artaud determinou uma perspectiva poético-filosófica e médico-experimental das sessões de psicotrópicos, algumas acompanhadas por uma psiquiatra especialista na matéria (Dr. Ajuriaguerra) e por um amigo pintor (Bernard Saby). Dessas experiências com a mescalina, arrastadas por um período de dez anos, resultaram algumas das suas obras mais citadas Misérable Miracle (1956), L’infini Turbulent (1957), Connaissance par les Gouffres (1961) e Les Grandes Épreuves de l’Ésprit (1966). No prefácio ao primeiro livro sobre os efeitos da mescalina, Michaux descreve deste modo o acto de escrever sob o efeito da droga: “Lançadas vigorosamente aos solavancos, na e através da página, as frases interrompidas, com sílabas voadoras, desfiadas, arrancadas, mergulhavam, descaíam, faleciam, e os seus restos renasciam, ressaltavam, fugiam e voltavam a explodir. As suas letras acabavam em fumaça ou desapareciam aos ziguezagues. As seguintes, igualmente descontínuas, continuavam de igual modo a sua narrativa atribulada, como pássaros em pleno drama aos quais tesouras cortariam as asas em pleno voo. (…) Como dizer isto? Ser-me-ia necessária uma maneira acidentada que não possuo, feita de surpresas, interrupções sem pés nem cabeça, clichés de um instante, ressaltos e incidentes, um estilo instável, serpenteante e infantil…” Mas a dificuldade da tradução linguística da experiência ressalta ainda melhor, quando diz no próprio corpo do texto “… encontramo-nos, para o dizer definitivamente, numa situação tal que cinquenta onomatopeias diferentes, simultâneas, contraditórias e a cada meio-segundo modificadas seriam a sua mais exacta expressão.” Em L’infini Turbulent, por exemplo, a quase inefabilidade sacro-religiosa dali resultante, evocando um sentimento de plenitude e de unidade, proporcionou a Michaux uma tradução poética muito próxima dos escritos dos místicos: “Partilha ao infinito./ Tudo interconectado; tudo e todos modificadores, conjuntamente. /[…] Consciência unificadora, de uma tal amplitude que faz aparecer o mundo, dito real, como uma alteração do mundo unificado /[…] Hino aberto a tudo./ Hino eu próprio. / Hino./ Vastidão havia encontrado verbo.”
Mas o melhor será mesmo ler os poemas e ver os desenhos que Henri Michaux deixou nos seus livros. E enquanto isso não acontece, ver o filme do qual escutamos a banda sonora, no site da Ubuweb: http://www.ubu.com/film/michaux_images.html.

Incursões Pelo Espaço Sideral

Numa tarde de Outubro, em 1953, quando regressava a casa depois de uma árdua jornada de trabalho na Lockheed Corporation em Loas Angeles, Orfeo Angelucci vê-se subitamente vítima de rapto por seres oriundos de um outro planeta. Sugado para o interior de um disco voador e catapultado para um lugar incerto, algures no espaço sideral, a milhares de kilómetros da Terra, Orfeo ouve uma voz que o incitava a chorar pelos pecados da humanidade, seguindo-se um zumbido e uma vibração rítmica que nele induziu um estado semi-onírico. A sala onde se encontrava torna-se escura e notas musicais são vertidas através das paredes, tomando a forma de uma melodia evocativa de visões de planetas e galáxias em movimento harmonioso.

Hubble Ultra Deep Field

O estranho rapto de Orfeo inscreve-se num lugar comum dos anos 1950, analisado em profundidade pelo psicanalista Carl Jung na obra de 1959, "Flying Saucers: A Modern Myth of Things Seen in the Skies": a abducção involuntária e iluminação subsequente de terráqueos por visitantes alienígenas. Mas o caso de Orfeo detinha uma outra particularidade, a associação desta experiência à audição de sons organizados, cuja ênfase na harmonia recapitula a música das esferas de Platão, de um Cosmos em revolução incessante, cujos movimentos se traduzem numa composição musical estruturada e significativa.
Em 1967, o astronauta e cientista Story Musgrave relatava que, na sua última missão ao espaço, havia escutado uma música misteriosa, nobre e magnificiente, mas os seus colegas de viagem não corroboraram esta história, condenando Musgrave a olhares furtivos e comentários jocosos que ecoavam nos corredores da NASA.
Música e Cosmos encontram-se desde sempre interconectados, mas durante os anos 1950, pelos condicionamentos históricos da corrida ao espaço e da Guerra Fria, a par com o desenvolvimento de novas tecnologias estereofónicas e de gravação de som, acabaram por ser profícuos em registos discográficos que procuravam mimetizar a ambiência do grande infinito.
Neste contexto, um elemento do restrito e elitista grupo que clamava estar ou ter estado em contacto com formas de vida extraterrestre, dotado de um sentido comercial mais apurado que os seus pares, resolveu traduzir as suas experiências num livro intitulado "From Outer Space To You", mas mais relevante, ocorreu-lhe sulcar os trilhos do vinil, replicando a música que ouviu de um estranho piano, adornado por caracteres bizarros e tocado por um indivíduo natural de Saturno, no álbum "Authentic Music From Another Planet". Howard Menger gravou assim o seu nome na história da música contemporânea, através de singelas composições para piano, flutuantes e desfocadas, cujo elevado grau de reverberação a elas imprimido, conferia-lhes a dimensão extraterrestrial almejada. Para além destes aspectos formais, era igualmente veiculada uma mensagem de iluminação, uma promessa de alteração da consciência global aos ouvintes do disco.

"Eye of God" (Helix Nebula)

O sentido e a tónica colocada na espacialização da space music é o motivo pelo qual o crítico David Hurwitz considera "The Creation", peça de 1798 de Joseph Haydn, como um dos primeiros exemplos deste género, patente nos rasgos de violino a simularem o fulgurante movimento do caos primordial. Não será de estranhar que esta composição surge no seguimento de uma conversa entre Haydn e William Herschel, astrónomo que descobriu o planeta Urano, sobre a relação entre música e astronomia. Estavam lançadas as sementes para um diálogo incessante entre estes dois campos, o qual atingiu o seu apogeu nas décadas de 1940 e 1950, no multifacetado terreno do easy-listening. Mas isso será matéria para uma outra emissão do Laboratório Chimico.

Playlist, 18 de Fevereiro de 2010:

Steve Roach - "Between The Gray And The Purple" (The Magnificient Void)
Steve Roach - "Void Memory One" (The Magnificient Void)
Howard Menger & Coil - "Saturn Suite"
Howard Menger - "Marla" (Authentic Music From Another Planet)
Howard Menger - "A Theme From Saturn" (Authentic Music From Another Planet)
Howard Menger - "The Song From Saturn" (Authentic Music From Another Planet)
Joseph Haydn - "Einleitung Und Die Vorstellung Des Chaos" (The Creation)