Caderno Escolar Ref. 233.V

Curiosos objectos que nos descobriram numa papelaria da cidade de Coimbra.
"Cadernos Psicadélicos" (ver pormenor no canto direito da contracapa)





Ευάνγελος Οδυσσέας Παπαθανασίου, Filho de Afrodite

Ao percorrer as faixas da compilação "The BYG Deal", editada pela Finders Keepers em 2009, deparamo-nos com um nome improvável, o qual motivou a emissão de 17 de Junho de 2010 do Laboratório Chimico. Fundada em 1968 no seguimento das revoltas estudantis, a BYG funcionou como catalisador da cena underground francesa, alimentando apetites colectivos pelo jazz, blues e rock psicadélico, e acalentando a chama criativa inspirada pela revolução. Neste registo compilatório encontramos nomes familiares, como Gong ou Brigitte Fontaine, a par do misterioso nome reproduzido no título deste texto, (Evangelos Odysseas Papathanassiou) cujos amantes da música sintetizada rapidamente reconhecerão como Vangelis. Em "The BYG Deal" dois temas pertencem-lhe, um atribuído a Vangelis e outro ao projecto Alpha Beta, revelando uma faceta do grego, para muitos desconhecida, pontuada pelo delírio psicadélico e que suscitou uma viagem pela sua história pessoal com o intuito de averiguar se outras improbablidades estariam ocultas por detrás do véu encadeador que foram os seus grandes sucessos como compositor de bandas sonoras.



Nascido em 1943, Vangelis deu os primeiros passos da sua carreira profissional no grupo The Forminx, o qual se tornou bastante reconhecido e conceituado na Grécia, até ao término de actividades em 1966. Um ano mais tarde, Evangelos Odysseas Papathanassiou junta-se a outra vaca sagrada da música helénica, Demis Roussos, formando os Aphrodite's Child, projecto de pop psicadélico cujo nome derivava de uma música de Dick Campbell contida no albúm "Sings Where It's At". Os primeiros trabalhos deste quarteto podem ser encontrados no disco do seu compatriota George Romanos "In Concert And In The Studio", contudo, considerando a sua terra natal um campo pouco fértil para o estilo musical que praticavam, optam por partir em direcção à Meca do psicadelismo europeu, Londres.


A viagem foi conturbada. Os músicos acabariam por não conseguir as licenças de trabalho exigidas pelo Reino Unido, o que, conjuntamente com as greves e protestos estudantis em Maio de 68, determinaram o assentar de arraiais dos Aphrodite's Child em Paris. Nesta cidade assinam pela Mercury Records e gravam dois discos, "End Of The World" em 1968, e "It's Five O'Clock" em 1969, ambos aclamados pela crítica e carinhosamente acolhidos pelo público. A jóia da coroa e último dos três albuns de originais do grupo começa a ser gravado em 1970, num momento em que as tensões entre os membros começavam a emergir. Tratava-se de um albúm conceptual, fruto do trabalho de Vangelis com o letrista Costas Ferris de adaptação do livro bíblico "Apocalipse de São João", intitulado "666".

Verdadeira revelação de rock progressivo e psicadélico, destacando-se pela ausência da sensibilidade pop que permeava os outros registos, "666" motivou um longo litígio entre Vangelis e a editora, a qual objectava a inclusão da faixa "∞" onde Irene Papas repetia as palavras "I was, I am, I am to come" num registo de histeria erótica. Outro foco de conflito era uma pequena referência na capa do disco onde se podia ler que este tinha sido gravado sob a influência de Sahlep. Erroneamente interpretada como um substância psicotrópica ou ritual ocultista, Sahlep era simplesmente uma bebida popular no Mediterrâneo Oriental, e o duplo LP lá acabou por ver a luz do dia em 1972, através da Vertigo Records, subsidiária da Mercury, numa altura em que os Aphrodite's Child já se haviam separado para prosseguirem carreiras individuais de sucesso variável.


Mas a história paralela de Vangelis pela música psicadélica não terminou com o apocalipse dos filhos de Afrodite. Em 1971 participa numa série de sessões de improvisação nos estúdios Marquee em Londres, das quais resultariam dois albuns, "Hypothesis" e "The Dragon", lançados em 1978 sem a autorização do músico, acabando por ser retirados do mercado pouco tempo depois. O rock progressivo continuou, assim, presente nas primeiras fases do seu trabalho em nome próprio, dando paulatinamente lugar à electrónica. O reconhecimento internacional, esse veio no formato banda sonora, com os sucessos de "Charriots Of Fire" e "Blade Runner", mas essa é outra história...

A incursão pelo passado de Vangelis teve a seguinte banda sonora:
Vangelis - "Stuffed Tomato" (V.A. - The BYG Deal)
Alpha Beta - "Atral Abuse" (V.A. - The BYG Deal)
Dick Campbell - "Aphrodite's Child" (Sings Where It's At)
George Romanos - "Eisagogi" (Two Small Blue Horses / In Concert And In The Studio)
Aphrodite's Child - "Valley Of Sadness" (End Of The World)
Aphrodite's Child - "Let Me Love, Let Me Live" (It's Five O'Clock)
Aphrodite's Child - "All The Seats Were Ocuppied" (666)
Vangelis - "Stuffed Aubergine" (The Dragon)

Mr. Suehiro Maruo’s Freakshow


Midori, shoujo tsubaki, a menina das camélias, pertencia a uma família pobre. O pai, endividado pelas dívidas do jogo, abandonou o lar e Midori, para ajudar a mãe doente, vendia flores nas ruas de Tokyo dos anos 20. Mas entretanto a mãe faleceu, deixando-a órfã e perdida num mundo cruel, do qual parecia ter sido resgatada quando um homem de chapéu de coco lhe propôs um trabalho no meio dos artistas. Porém, a desafortunada rapariga cedo descobriu que havia sido enganada e que se tornara simplesmente numa criada permanentemente maltratada por todos no circo de aberrações do senhor Arashi. Gigantes engolidores de espadas, anões desmembrados, hermafroditas e homens desfigurados de cabeça enfaixada povoavam os dias miseráveis de Midori, assediando-a, humilhando-a, tornando a sua vida tão infernal que preferia a morte. Até que um dia apareceu um novo personagem, Masamitsu, o carismático anão contorcionista que realizava o prodígio de se enfiar completamente num boião de vidro. Com o seu penetrante olhar, seduziu Midori e mostrou-se como o seu protector, impedindo que maltratassem a sua querida assistente. Frágil e sem outra esperança, Midori agarrou-se a ele revelando um sorriso que há muito havia perdido. Mas também Masamitsu tinha um lado obscuro e perturbador.


Esta história, posta em banda-desenhada, pelo já famoso Suehiro Maruo, inspira-se num antigo kami shibai, ou seja, um espectáculo tradicional que ocorria em feiras de rua, onde um contador de histórias se socorria de cartões com desenhos fantásticos para ilustrar as suas narrativas efabuladas, em cujo verso estavam por vezes escritas legendas relativas à imagem, que eram vendidas posteriormente aos que haviam ficado fascinados com aqueles contos cheios de drama e crueldade. Suehiro Maruo cruzou esta referência do Japão tradicional e do subgénero do muzan-e – gravuras que representavam atrocidades - com a estética do expressionismo alemão, fazendo jus à sua inspiração gótica de juventude. Na verdade, o trabalho de Suehiro Maruo sempre foi assombrado por esses autores mais obscuros como o Marquês de Sade, Edgar Allan Poe, Baudelaire ou Georges Bataille, onde o erótico e o grotesco sempre vão de mãos dadas para explorar as mais negras paixões da humanidade. Aliás, as suas obras são conotadas normalmente com o ero-guro, movimento literário e artístico dos anos 20/30 que se focava na violência, no erotismo e no grotesco e que aliava a tradição dos artistas shunga como Yoshitoshi com o imaginário decadente da república de Weimar.



Midori foi ainda adaptado para o cinema de animação por Hiroshi Harada, um renegado da indústria de animação japonesa, tal como Maruo havia sido no início pelas revistas de shonen manga. Rejeitado por inúmeros estúdios, decidiu gastar as suas poupanças numa produção independente, com a consultadoria artística do próprio Maruo e a ajuda de várias figuras do underground japonês, para realizar um filme que não teve distribuição comercial no Japão. Com efeito, as projecções do filme no Japão, a partir de 1992 – ano da sua conclusão – existiram apenas em circunstâncias bastante obscuras, fomentadas pelo próprio Harada que divulgava cripticamente o filme e a sua projecção, deixando pistas sobre a ocasião e o local para os que conseguissem encontrar poderem assistir ao filme, rodeados por um ambiente de cabaret e freakshow. A banda sonora foi composta nada mais nada menos que pelo não menos estranho J. A. Seazer, habitué da cena psicadélica e experimental japonesa, membro dos Tokyo Kid Brothers e da companhia de teatro de Shuji Terayama para a qual fez inúmeras composições.

Elogio do Psicadelismo Sombrio


Junichiro Tanizaki - "Elogio da Sombra" (primeira edição portuguesa)


"O facto de, na casa japonesa, o alpendre do telhado avançar tanto, deve-se ao clima, aos materiais de construção e a diversos outros factores, sem dúvida. Por exemplo, à falta de tijolos, de vidro e de cimento, terá sido preciso, para proteger as paredes das rajadas de chuva laterais, projectar o telhado para diante, de forma que o japonês, que teria certamente preferido uma divisão clara a uma escura, foi assim levado a fazer da necessidade virtude. Mas aquilo a que chamamos belo não é normalmente mais que uma sublimação das realidades da vida, e foi assim que os nossos antepassados, obrigados a viver quer quisessem quer não em divisões escuras, descobriram o belo no meio da sombra, e depressa utilizaram a sombra para obter efeitos estéticos."

Junichiro Tanizaki, "Elogio da Sombra"



Kousokuya - "Ray Night 1991-1992 Live"


Na emissão de 3 de Junho de 2010, foi traçado um paralelismo entre um ramo do psicadelismo que floresceu no Japão a partir de finais da década de 1960, caracterizado pelo negrume ácido das melodias, as vestimentas pretas dos seus artífices, e as capas monocromáticas e minimalistas que adornam os discos, e um ensaio de estética da autoria do escritor nipónico Junichiro Tanizaki intitulado "Elogio da Sombra" datado de 1933.

A hipótese levantada é que este género musical, que doravante nos atrevemos a designar "psicadelismo sombrio", revela, mais que o Group Sounds ou o Japrock, a essência da estética tradicional japonesa. No seu pequeno livro, Tanizaki apresenta uma série de exemplos concretos, da arquitectura das casas aos objectos lacados, passando pelo teatro e pelas vestimentas tradicionais, sobre os quais faz incidir as dicotomias luz e sombra, claridade e obscuridade, para contrastar Oriente e Ocidente, tradição e modernidade.


Keiji Haino - "Affection"


"Junichiro Tanizaki (1886-1965) não foi excepção nesta tendência e entusiasmo, sendo as suas obras de juventude caracterizadas por um estilo onde é visível o fascínio pelo Ocidente e onde são notórias as influências de autores como Edgar Poe, Charles Baudelaire ou Oscar Wilde. No entanto, este entusiasmo como que arrefeceu face ao trágico impacto do terramoto que ficou conhecido para a História pelo Grande Kanto de 1923 (142.000 mortos), sismo que levou Tanizaki a abandonar definitivamente Tóquio, sua cidade natal, e com ela o tipo de vida e as influências que até aí tanto o encantavam e o fizeram passar os dias de juventude numa boémia dourada, marcada pelos estigmas da modernidade. Na ressaca desse sismo interior, Junichiro Tanizaki abandonou a mulher e filhos e mudou-se para a zona de Kansai, região onde estão situadas as tradicionais cidades de Kyoto, Kobe e Osaka, passando, doravante, a sua obra a enaltecer os valores e a cultura japonesa dos seus antepassados. Publicado em 1933, o Elogio da Sombra demonstra com sublime rigor e detalhe descritivo essa nova postura de Tanizaki perante o mundo, sendo as suas páginas um louvor à especificidade (superioridade?) do modo japonês de encarar a existência e um manifesto de um certo desgosto pelo seu desaparecimento face à ocidentalização do Japão"


Pedro Serrano, nota introdutória à edição portuguesa de "Elogio da Sombra"



Les Rallizes Dénudés - "'77 Live"


Algumas décadas mais tarde, no Outono de 1967, a academia Eigakko, uma universidade fundada em 1875 por um samurai reformado, era povoada por um conjunto de estudantes intelectuais que rejeitavam o comercialismo galopante do Group Sounds de influência marcadamente britânica e americana, optando antes por enaltecer as virtudes da música folk japonesa. Os seus gostos recaiam sobre o traje negro e a literatura existencialista, os quais funcionavam como contraponto aos logótipos multicolores da Coca-cola e à filosofia "alegre" da contracultura hippie. A atmosfera fumarenta, escura e abafada dos cafés onde esta turba se reunia, acabaram por seduzir um jovem estudante, de seu nome Takeshi Mizutani, que em Novembro de 1967 forma um quarteto com Moriaki Wakabayashi (baixo), Takashi Kato (bateria) e Takeshi Nakamura (guitarra), mais tarde reconhecidos como Les Rallizes Dénudés. Proponentes de uma música agreste e sombria, pontuada por doses massivas de reverb e feedback, estas personagens reclusivas e isolacionistas faziam ecoar musicalmente as palavras contidas no ensaio de Tanizaki, fundando o "psicadelismo sombrio". Curioso será notar que, à semelhança de Junichiro Tanizaki, também Takeshi Mizutani foi influenciado pelos trabalhos de escritores ocidentais, como Jean-Paul Sartre, Antonin Artaud e Jacques Derrida, os quais prosseguiram na senda dos supracitados, explorando as facetas mais obscuras do psiquismo humano.


Suishou No Fune - "Where The Spirits Are"

Outros grupos trilharam caminhos similares, continuando alguns deles a subsistir na actualidade. Fushitsusha e Keiji Haino, Kousokuya e Jutok Kaneko, Suishou no Fune e a editora Psychedelic Speed Freak (P.S.F.), continuam a ostentar os estandartes deste "psicadelismo sombrio", o qual não será mais que uma nova camada de sedimentos que se acumulou no curso de água resultante do curioso intercâmbio entre Ocidente e Oriente, inundado de ambivalência, que remonta à abertura forçada do Japão em 1853.

Elogio da Sombra (capa da segunda edição portuguesa)

"Alguns poderão dizer que a beleza enganadora criada pela penumbra não é a beleza autêntica. Todavia, e tal como o dizia atrás, nós os Orientais criamos beleza ao fazermos nascer sombras em locais por si mesmo insignificantes.

Ramagens
se as juntarem e enlaçarem
uma cabana surge
desenlaçai-as e tereis
como antes a planura

diz o velho poema, e, afinal de contas, o nosso pensamento actua segundo um raciocínio análogo: creio que o belo não é uma substância em si, mas apenas um desenho de sombras, um jogo de claro-escuro produzido pela justaposição de diversas substâncias. Tal como uma pedra fosforescente que emite brilho quando colocada na escuridão e ao ser exposta à luz do dia perde todo o fascínio de jóia preciosa, também o belo perde a sua existência se lhe suprimirmos os efeitos da sombra. (...) Mas qual a razão para esta tendência de procurar o belo no obscuro com tanta força se manifestar apenas nos Orientais? Ainda não há muito, também o Ocidente ignorava a electricidade, o gás, o petróleo, mas, tanto quanto sei, nunca sentiu, a tentação de se deliciar com a sombra. (...) Qual poderá ser a origem de uma diferença de gostos tão radical? Pensando bem, é porque nós, Orientais, procuramos acomodar-nos aos limites que nos são impostos, que desde sempre nos satisfizemos com a nossa presente condição; consequentemente, não sentimos repulsa alguma pelo que é obscuro, resignamo-nos a ele como a algo de inevitável: se a luz é fraca, pois que o seja! Mais, afundamo-nos com delícia nas trevas e descobrimos-lhe uma beleza própria."

Junichiro Tanizaki, "Elogio da Sombra"



Delícias musicais que fundamentaram este paralelismo:
Keiji Haino - Untitled (Tenshi No Gijinka)
Les Rallizes Dénudés - "Enter The Mirror" (Flightless Bird)
Kousokuya - "Shadow Of A Dream" (Echoes From The Deep Underground)
Suishou no Fune - "Black Phantom" (Where The Spirits Are)

Acompanhamento audiovisual: