Um repositório de memórias: a Pop Hipnagógica

Memórias, memórias de memórias, pseudo-memórias. Talvez nunca como hoje o underground musical norte-americano tenha lançado, tão descaradamente, o olhar, a mente e o corpo para os anos 80 do século passado. E, ao fazê-lo, resgatam a artificialidade hiper-real da cultura popular dessa década, criando uma música difusa, espectral, alucinada.
Hypnagogic Pop foi um termo cunhado recentemente pelo jornalista britânico David Keenan - que havia já estado por detrás de designações "novas", como a New Weird America. Keenan utiliza a expressão para descrever um conjunto mais ou menos heterogéneo de produções musicais, maioritariamente norte-americanas, cujas premissas assentam fundamentalmente na pop (mas não só), e que recuam à década de 80 - na qual os seus intérpretes terão nascido - para lhe irem buscar inspiração. Nomes como os The Skaters e alguns dos pseudónimos individuais dos membros do dúo, James Ferraro e Spencer Clark, como Lamborghini Crystal ou Balck Jocker, respectivamente, Ariel Pink, Sun Araw, Nite Jewel, Tickley Feather, Rangers, Gary War ou Ducktails, regurgitam fidedignamente o imaginário dos anos 80, transfigurando o real recorrendo ao do it yourself que sublima a nostalgia dormente e o desejo de partir.

A hipnagogia, ou as alucinações hipnagógicas, designam os estados que caracterizam o limbo semi-consciente situado entre o sono e a vigília, sobretudo presentes no adormecimento, e onde micro-fenómenos alucinatórios do tipo visual, auditivo e por vezes táctil podem ocorrer. É esta recuperação semi-consciente centrada numa parcela específica do passado que dá o mote para a pop hipnagógica, embora seja certo que qualquer estimulação vivida é passível de ser hipnagogicamente recriada, e que inputs visuais e auditivos ocupam a linha da frente para a reconversão subliminar, e ainda que por via da sua contextualização com a auto-referência dos seus intérpretes, qualquer criação musical pode considerar-se hipnagógica. Adiante, olhando e escutando de perto o que Keenan diz, ressalta a proximidade semântica à hauntologia proposta por Simon Reynolds, substituindo o brittish flavour pelo american style. Centrando-nos nas manifestações concretas do produto sonoro, descortina-se um espectro demasiado amplo no seu alcance (estilístico e temporal), que, não obstante a compreensão para com o esforço (necessário?) em criar grelhas de interpretação que funcionem como âncoras rumo a uma navegação minimamante orientada em mentes em risco de saturação por anseios melómanos, acaba por colocar no mesmo saco uma miríade de projectos que, apesar de evocarem o psicadelismo sob o manto difuso da memória refractada, o fazem recorrendo a formas e conteúdos tão díspares como a celebração da cultura trash por via declaradamente psicotrópica (The Skaters e afins), as visões tropicais e paradisíacas de Ducktails ou Sun Araw, o tédio suburbano de Rangers e da Underwater Peoples e seus derivados, a desconstrução da canção pelo ruído (Ariel Pink, Gary War ou Zola Jesus), os festins ácidos de Predator Vision, Magic Lantern ou Antique Brthers, revisitações surf (Super Vacations, Real Estate ou Best Coast), ou através da reconversão da new age/kösmische como catalisador de viagens cósmicas de passageiros como Oneothrix Point Never, Infinity Window ou Emeralds.

Parece contudo incontornável que o underground norte-americano actual está a reinterprar o som de outra época. Muitas vezes com parcos meios e produção barata, o som com baixa fidelidade fetichiza o material com que por essa mesma altura as franjas sonoras mais extremas faziam valer-se - muitos dos registos são lançados em cassete, há uma saturação visual celebratória nos vídeos de alguns temas, e o artwork idolatra o preto-e-branco fotocopiado. A sonoridade distingue um miasma que reenquadra as marcas distintivas dos anos 80: a profundidade dos teclados, as linhas de baixo em slow motion, o ruído empoeirado da fita magnética e uma saturação estereofónica de efeitos, que recriam atmosferas fumarentas sob o sgno da bola de espelhos, ou simplesmente, os ritmos pós-modernos da vivêcia suburbana.
Há uma marca sintética vinda do mainstream, e cuja artificialidade se evidencia lado a lado com a nostalgia e com o desejo de epifanias suspensas pela latência infantil. O que resulta em magia displicente, entre o cool e o foleiro, desembocando num reconhecimento estranho.


MATRIX METALS "FLAMINGO BREEZE, PART 4" from OLDE ENGLISH SPELLING BEE on Vimeo.


Neste dia ouviu-se no Laboratorio Chimico:

Ducktails - Lundrunner (Landscapes, 2009)
Rangers - Bean Crick (Suburban Tours, 2010)
Lamborghini Crystal - Video Head Cleaner (Dial 747 Creepozoid, 2007)
James Ferraro - II (Clear, 2009)
Ariel Pink - Gettin' High in the Morning (House Arrest, 2006)
Gary War - See Right Through (Horribles PArade, 2009)
Sun Araw - Horse Steppin (Beach Head, 2008)
Rangers - Golden Triangle (Suburban Tours, 2010)
Crónica O Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras - L'Amerique Hypnagogique de Baudrillard

Podcast brevemente.

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