Heldon


A emissão inaugural do Laboratório Chímico na nova grelha de programação da RUC foi dedicada ao seminal grupo francês de rock electrónico Heldon. Este grupo, veículo sonoro do génio de Richard Pinhas, gravou sete álbuns entre 1974 e 1979 (e um outro em 2001). Durante este hiato temporal Pinhas encetou uma profícua carreira a solo e diversas colaborações com nomes tão díspares como Pascal Comelade, ou recentemente com Merzbow.

A sonoridade de Heldon poderá ser entendida como a sublimação da energia exuberante do rock pela lógica calculada dos sintetizadores, e uma estética informada, quer pela filosofia de Nietzsche e Gilles Deleuze, quer pela literaura de ficção científica e ciberpunk de Philip K. Dick, Normand Spinrad ou Maurice Dantec. Foi com este último que Pinhas, em 1999, delineou o projecto Schizotrope, um tributo musical e spoken-word ao mentor Deleuze, que havia falecido quatro anos antes. A voz de Deleuze é mesmo utilizada em "Le Voyageur", um tema integrado num dos dois 7´´ lançados em 1972 enquanto Schizo, um grupo embrionário do que dois anos volvidos seria Heldon. Nesses anos, Pinhas dedicou-se ao estudo e docência da filosofia na Sorbonne, tendo a sua tese de doutoramento - A relação entre a esquizoanálise e a ficção científica - deixado antever futuras incursões pelos destroços de um apocalipse tecnológico.

No primeiro LP de Heldon, "Electronique Guérilla" - lançado em 1974 pela Disjuncta (Deleuze faz-se ouvir em "Quais marchais, mieux qu'en 1968", novo nome para o tema referido em cima) -, a exploração da ligação homem-máquina (sintetizador-guitarra) é indissolúvel da profecia nietzschiana que aponta para que a música do futuro reconcilie a antinomia mecânica e lírica da existência humana, como evocado nas paisagens narcóticas do álbum. No mesmo ano surge "Allez Téia", considerado como o registo mais atípico do grupo. Nele, Pinhas absorve o ambient e as repetições dos experimentos de Fripp e Eno, com incursões melodiosas e pastorais que, no contexto da discografia de Heldon, se assemelham a um estado de suspensão cerebral. O conceito híbrido da integrar a máquina no corpo é retomado em "It's allways rock n' roll" (1975), uma celebração da violência ciberactiva ou uma pré-cognição do que viria a ser alguma da música industrial que despontaria daí em diante.

"Agneta Nilsson", o quarto álbum do grupo, é a consciência computorizada do apocalipse, a concretização sónica do enamoramento de Pinhas pela submersão esquizofrenizante das distópicas novelas de P.K. Dick - ou a evocação do processo psíquico da desintegração do self. Também o niilismo filosófico e a anarquia social e política podem ser encontrados nas cinco perspectives do disco, com um dos temas a ser dedicado à organização germânica radical de extrema-esquerda Bahder-Meinhoff. "Agneta Nilsson" terá funcionado como uma fronteira na sonoridade de Heldon, já que nos três álbuns seguintes se vislumbra uma abordagem mais estruturada e controlada. "Un rêve sans conséquences spéciale" (1976) foi gravado pelo power-trio composto pela guitarra de Pinhas, a bateria de François Auger e o sintetizador de Patrick Gauthier, e é um disco intenso como uma tempestada diluviana que se abate sob um Éden cibernético.

O assalto ao sistema nervoso central prossegue nos discos seguintes, o denso "Interface" (1978), gravado já depois de incursões solistas de Pinhas, e o literal "Stand-By" (1979). No dealbar do século XXI Pinhas volta a gravar sob a égide de Heldon: "Only chaos is real", filosoficamente coerente e por isso mesmo musicalmente doente.

A discografia de Heldon foi alvo de reedições pela francesa Spalax a pela Cuneiform, nos EUA. A editora catalã Wha Wha Records reeditou recentemente os dois primeiros LP's do grupo com 7´´ que contêm os trabalhos dos Schizo.

Ouviu-se:
Schizo - Le Voyageur
Heldon- Zind (Electronique Guérilla)
Heldon - Back to Heldon (Electronique Guerilla)
Heldon - In the Wake of King Fripp (It's Allways Rock n' Roll)
Heldon - Côtes de Cachalots à la Psylocibine (It´s Allways Rock n' Roll)
Heldon - Perspective V (Agneta Nilsson)
Heldon - Marie Virgine C. (Un Rêve Sans Conséquences Spéciale)

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Barbarella

E Deus… criou a mulher! Ou melhor, Vadim criou BB, Brigitte Bardot, Barbarella, aliás, Jane Fonda. Vamos por partes: em 1956, Roger Vadim, casado com Brigitte Bardot, realiza o filme “Et Dieu…créa la femme”, impulsionando a carreira e o fenómeno mediático, mítico, de BB, o sex-symbol da década seguinte, ao mesmo tempo arquétipo de feminilidade e símbolo da emancipação da mulher nos anos 60. Revolução dos costumes, revolução iconográfica. Em 1962, Jean-Claude Forest inspira-se nas curvas pecaminosas e nos lábios carnudos de BB para criar a heroína de banda-desenhada, Barbarella. Tal como o modelo, a heroína das aventuras espaciais no século XL (40) incarna a emancipação sexual, moral e política da mulher, numa França gaulista, ainda pouco preparada para esses atrevimentos que haveriam de culminar no famoso Maio de 68. A banda-desenhada escandaliza e chega mesmo a ser considerada para adultos, talvez mais devido ao seu conteúdo “revolucionário” do que à carga erótica que, de facto, também tinha. Apesar da censura, ou talvez por causa dela, esta banda desenhada torna-se num pequeno fenómeno de culto entre a juventude europeia ilustrada que cresceu à luz dessa “nova vaga” que invadia os ecrãs e os cérebros. No mesmo ano da revolução cultural dos estudantes, estreou o filme que levava ao ecrã a personagem criada por Forest, Barbarella. Para desempenhar o papel, nada mais nada menos que Jane Fonda, então a terceira esposa de Roger Vadim, o qual realiza o filme em 1968, explorando o universo de bolhas da banda-desenhada e a atmosfera psicotrópica que se respirava na época.



A cena de abertura do filme é o memorável strip-tease na cápsula sem gravidade de Jane Fonda. Num cenário composto pela “Grande Jatte” pointilhista de Georges Seurat, por uma escultura de estilo romano e pelas paredes felpudas da sua nave espacial, Barbarella parece flutuar para fora do seu fato espacial prateado, ao ritmo da canção de Bob Crewe, a meio caminho entre o easy-listening e o psych-exploitation, como aliás o resto da banda sonora que escutámos em fundo. Não obstante a descontracção extática de Barbarella, oriunda de uma utopia de paz e amor, mas onde este não se pratica, antes se experimenta pela ingestão de pílulas criadas para o efeito, ela é enviada em missão pelo presidente da Terra, em busca do cientista Duran-Duran que criara uma destruidora arma, chamada Positron. Depois de chocar contra o planeta Lithium, nos arredores do qual se perderam as pistas do cientista procurado, Barbarella é atacada por bonecas assassinas, conduzidas pelas sobrinhas da rainha do mal, a Rainha negra de Sogo. Salva por um caçador anacoreta que consegue convencer a heroína a praticar sexo da forma arcaica, começa uma série de pequenas revelações e aventuras que a farão conhecer Pygar, o anjo cego que reaprende a voar depois de ter feito amor – à moda antiga - com Barbarella, e voar nos seus braços até à cidade de Sogo, a qual estava rodeada pelo Matmos, a essência líquida do mal. Descobre então que Duran-Duran é o porteiro da cidade das perversões e das sevícias, uma espécie de Sodoma governada pela lésbica rainha negra. Conhece ainda Dildano, um idealista e sonhador revolucionário que a salva de terríveis tormentas e que pretende recompensar com sexo tradicional, mas sem sucesso. Prova ainda a “Essência do Homem”, elixir psicotrópico feito a partir da energia dos escravos masculinos da rainha lésbica, mas é finalmente submetida à infernal máquina Orgasmatron que musicalmente a obriga a ter orgasmos forçados, porém Barbarella é uma mulher moderna e preparada para os mais altos níveis de gratificação sexual, sobrevivendo à terrível tortura. Num volte-face inesperado, Barbarella alia-se ainda com a rainha de Sogo para a defender de Duran-Duran, que entretanto resolve rebelar-se contra ela e tomar o poder total pela força hipnótica da câmara dos sonhos. As bolhas e as cores geradas pelo ambiente psicadélico baralharam com certeza o “stream of consciousness” do argumentista e é uma bolha criada pelo próprio Matmos que acaba por salvar a inocente Barbarella e a lésbica companheira real, que finalmente embarcam com Pygar na nave espacial da heroína, deixando em aberto um virtual “ménage à trois” durante a viagem de regresso à Terra.



San Francisco Sound


Uma hora de Laboratorio Chimico dedicada em exclusivo grupos oriundos de San Francisco, epicentro do sismo psicadélico norte-americano, onde a comunidade artística granjeou idiossincrasias que, no rock, viriam a ser apelidadas de San Francisco Sound.

Alinhamento do programa:

The Great Society - White Rabbit
The Greateful Dead - Mindbender + It Hurts me Too
Quicksilver Messenger Service - Song for Frisco
Big Brother & The Holding Company - Piece of my Heart + Turtle Blues
The Great Society - Somebody to Love

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Anti-LSD



As experiências com LSD e a sua promoção por intelectuais e universitários nos anos 60 provocaram uma propagação mediática que transbordou as margens da contra-cultura, chamando a atenção de uma cultura dominante conservadora e preocupada com o futuro dos seus filhos. Surgiram por isso, ainda, na segunda metade da década, vários documentos em áudio e vídeo que, por vezes, não se limitaram a descrever de um ponto de vista jornalístico o fenómeno, mas a tentar demover os jovens dessas experiências, alertando para os perigosos efeitos e funestas consequências do malogrado químico. Na crónica de 8 de Outubro escutámos um excerto de um desses discos, editado em 1968, pela Key Records, e produzido pelo ex agente do FBI, Willard Cleon Skousen. Narrado pelo próprio - um mórmon conservador de extrema-direita que havia escrito, em 1963, o controverso “The Naked Communist” e que havia lidado com a delinquência juvenil aquando do seu trabalho no Federal Bureau of Investigation – o disco, denominado “Instant Insanity Drugs”, alerta os pais e educadores preocupados para o flagelo do LSD num tom pedagógico e condescendente. Para dar uma ideia do conteúdo do disco, na capa do LP figurava uma mala com a seguinte inscrição: “Esta mala poderia transportar L.S.D. em quantidade suficiente para incapacitar todo o homem, mulher ou criança dos Estados Unidos. O que vai você fazer contra isso?”



Mais tarde, este LP foi re-editado em CD conjuntamente com um outro divertido item de contra-propaganda: LSD – The Battle for the Mind, produzido pela Bible Voice Inc e narrado por Willard Cantelon, que podemos ainda escutar em fundo, num registo mais abertamente religioso que reinventa a luta ascética contra os demónios tóxicos, para desviar os jovens do mau caminho, de modo a reencontrarem a verdade cristã.

Eis outro exemplo de contra-propaganda da mesma época:


A ubiquidade do número 7


No dia 7 de Julho de 2007, precisamente às 7 horas e 7 minutos da tarde, 77 bateristas juntaram-se no Empire-Fulton Ferry State Park em Brooklyn, sob a batuta dos dadaístas psicadélicos Boredoms, para um delírio percussivo megalómano de proporções nunca vistas até então. Os músicos encontravam-se agregados em células, cada qual liderada por um determinado baterista, que seguia diligente e atentamente as instruções de Yamantaka Eye. Acontece que, por coincidência cósmica, a maior parte destes indivíduos fazia parte de grupos representativos do psicadelismo musical contemporâneo, uma desculpa mais do que aceitável para uma hora de Laboratório Chimico. No final, espaço para escutar a gravação áudio de 77 Boadrum, nome do evento e do duplo cd, com dvd incluído, lançado posteriormente numa edição com a módica e apropriada quantia de 7777 yen.

Aqui fica a lista dos temas tocados durante o programa, cada qual seguido do nome do baterista:

Soft Circle - "Ascend" (Full Bloom) / Hisham Bharoocha
King Cobb Steelie - "Pass the Golden Falcon" (Junior Relaxer) / Robin Easton
Electroputas - "Profundo Rosso" (3) / Jaiko Suzuki
Volcano the Bear - "Burnt Seer" (Amidst the Noise and Twigs) / Aaron Moore
No-Neck Blues Band - "The Coach House" (Clomeim) / David Nuss
Oneida - Whats Up Jackal" (Rated O) / Kid Millions
Tall Firs - "Buddy / Baby" (Tall Firs) / Ryan Sawyer
Gang Gang Dance - "Bebey" (Saint Dymphna) / Tim DeWitt
Lightning Bolt - "Sound Guardians" (Earthly Delights) / Brian Chippendale
BOREDOMS - "SEVEN" (77 BOADRUM)

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Fifty Foot Hose (San Francisco) 1967-69

Em meados dos anos 60, na baía de São Francisco, o espírito do tempo era o da vida em comunidade, experimentação e criação colectiva. Interessava menos o talento de cada um do que a expressão em conjunto das idiossincrasias, na esperança de fazer despontar os “amanhãs que cantam”. Com um clima ameno que fazia crescer o flower power e promovia o encontro quotidiano de artistas, poetas e músicos em festivais, cafés concerto, happenings de rua, não é de estranhar que inúmeros grupos musicais polvilhassem a terra fértil da Califórnia, com certas características regionais, que permitiu mais tarde falar de um “Som de São Francisco”. Grateful Dead, Jefferson Airplane, the Great Society, Quicksilver Messenger Service ou Blue Cheer foram algumas das mais famosas bandas que reflectiram um cruzamento de influências poéticas da Beat Generation da “Renascença de São Francisco” na década anterior, dos sons da América profunda com o revivalismo do folclore tradicional, o Blues, o BlueGrass, mas também do jazz e do rock que no contexto da experimentação química e da expansão da mente se tornavam psicadélicos. Mas sem esquecer que o estuário do rio Sacramento configura uma das áreas mais vanguardistas do ensino universitário americano, não espanta que todas essas referências populares se misturassem também com referências musicais mais eruditas, como John Cage, Terry Riley – já aqui abordado nestas crónicas – ou mesmo Edgar Varèse. E foi alegadamente a escuta do “Poème Electronique” numa digressão americana de Varèse, em 1962, que despertou o interesse do adolescente e impressionável Louis “Cork” Marcheschi para a exploração das virtudes musicais da música de síntese.



Por volta de 1966, Marcheschi que tocava numa banda de Rhythm’n’Blues – The Ethix – que actuava em clubes da Califórnia e do Nevada, conseguiu editar um single muito apropriadamente denominado “Bad Trip”. Inusitadamente experimental e ruidoso, podia ser tocado a 33 ou a 45 rotações, sem perder a melodia ou o ritmo, já que, pura e simplesmente não estavam ali presentes. Mas o mais interessante é que só foi possível criar essa faixa com a ajuda de um instrumento electrónico criado e modificado pelo criativo músico - que mais tarde e sem espanto se tornaria num nome relevante da escultura cinética e instalação em espaços públicos – combinando theremins, caixas de distorção, um tubo de cartolina e um altifalante recuperado de um bombardeiro da IIª Guerra Mundial! Este mesmo instrumento seria a marca distintiva do grupo seguinte formado pelo futuro escultor, pelo guitarrista Dave Blossom e pela sua esposa Nancy, pelo baterista Kim Kinsey e pelo sempre intoxicado Larry Evans: estou a falar de Fifty Foot Hose. Menos famosa do que qualquer das bandas anteriormente referida, foi talvez das primeiras a cruzar consistentemente a electrónica no rock psicadélico, tornando-se um antecedente significativo das experiências de Pere Ubu, Chrome ou Throbbing Gristle.



Apenas um álbum, editado em 1969, mas gravado entre 1967 e 1968, ao mesmo tempo que acompanhavam em concerto bandas como os Blue Cheer, Chuck Berry ou os Fairport Convention, deixou como testemunho daquela época criativa e aberta à experimentação – não obstante o facto de o disco editado pela Limelight não ter tido sucesso comercial e isso ter ditado também o fim do projecto – um disco, “Cauldron”, heterogéneo mas paradoxalmente consistente. Foi sobretudo por razões financeiras e de sobrevivência que quase todos os membros da banda migraram para a produção californiana do musical “Hair”, tornando-se Nancy Blossom na sua voz principal, enquanto Cork Marcheschi regressou à escola de Belas-Artes para construir uma carreira sólida na escultura e instalação com néons e som ambiental, pondo assim fim aos Fifty Foot Hose… pelo menos durante os 30 anos seguintes, já que em 1996 Marcheschi e David Blossom reúnem-se mais uma vez para os fazer renascer, com alguns concertos ao vivo e com novos músicos, gravando no ano seguinte um novo álbum “Sing Like Scaffold”. Alguns membros dessa nova formação fundam nos inícios do século XXI uma banda cheia de humor dadaísta e espírito de experimentação patafísica, os Kwisp, lançando em 2004 “Teriyaki Vest Odissey”, ainda com a colaboração de Marcheschi. Ouviremos, no entanto, apenas faixas do disco seminal, “Cauldron”. “Fantasy” acompanhou-nos em fundo. Já de seguida, escutaremos a faixa homónima “Cauldron” e depois “Red the Sign Post” [faixa 6], onde a voz de Nancy ressoa o estilo de Grace Slick.

Site oficial do artista Louis "Cork" Marcheschi: http://www.corkmarcheschi.com/