Fritz, the Cat

“Os anos 60? Tempos felizes. Tempos pesados.” É assim que começa o filme de 1972, “Fritz, the Cat”, e de facto dá o mote para os 78 minutos da animação inspirada nas personagens antropomórficas criadas por Robert Crumb em meados dos anos 60. Numa tradição tão antiga como a das Fábulas de Esopo e que passa pelas de La Fontaine, também nesta efabulação são os animais que falam e agem para revelar as nossas qualidades e defeitos demasiado humanos. Neste caso específico, retrata-se ainda uma época, a década de sessenta, numa América cheia de contradições: uma geração cheia de ilusões, mas que se refugia no seu discurso ideológico pan-revolucionário e comunitário para mascarar o hedonismo individualista que mais tarde se haveria de revelar. O filme é bem mais sarcástico e violento do que a banda desenhada criada por Crumb, mas o principal da caricatura do meio estudantil daquela década já nela se encontrava de modo bem explícito. Fritz, o Gato, é um felino bem-falante e sedutor que facilmente se envolve em complicações românticas por culpa de uma libido obcecante e das suas tropelias discursivas de poeta idealista e torturado, cuja imagem quer fazer passar.



Circunstâncias da história e da geografia fazem-no experimentar os vícios e costumes dos grupos vigentes. Dos hippies, cuja música de intervenção e protesto contra as guerras imperialistas americanas mostra um conjunto de convicções políticas e sociais, conservará sobretudo a crença no amor livre e descomplexado e na iluminação gnoseológica das drogas. Com os negros (corvos) de Harlem partilha a vida fora da lei e descobre as condições de pobreza e segregação a que são remetidos, pelo que, após ter sido salvo por um contrabandista e depois de uma apaixonada relação sexual com uma prostituta negra, descobre a sua vocação de Black Panther e apela à insurreição, a qual será rapidamente reprimida pelo napalm da força aérea americana e pelas autoridades policiais representadas por porcos. Salvo das perseguições multi-laterais pela sua namorada, uma raposa com sentido pragmático e realista, põe-se a caminho de São Francisco na sua companhia a qual se lhe revela cada vez mais entediante. A meio da viagem, abandona a namorada no deserto e conhece uma lebre heroinómana azul e a sua respectiva companheira, uma égua masoquista que se submete às suas humilhações e violações para não ficar sozinha. Apesar da compaixão que esta personagem lhe desperta, Fritz associa-se à lebre e a um grupo de terroristas de extrema-esquerda que planeiam fazer explodir uma central de energia. Apercebendo-se, no entanto, que se trata mais de uma libertação de energia sádica e destruidora do que de um protesto contra a sociedade industrial, Fritz ainda tenta evitar a tragédia, mas acaba por ser atingido na explosão que o leva a um hospital de Los Angeles. Aí é visitado pelas jovens amantes gatinhas nova-iorquinas e pela égua Harriet que fazem nele ressurgir a sua verdadeira natureza hedonista e abandonar o pseudo-heroísmo revolucionário.



Este retrato sarcástico e duro da geração de 60 teve um enorme sucesso de bilheteira e não obviou à classificação como primeiro filme de animação para adultos nem a polémicas e controvérsias. Desde logo com o próprio Robert Crumb que não reconheceu a sua personagem no filme e preferia que o seu nome nem lhe estivesse associado. O desgosto de Crumb foi de tal modo que resolveu nesse mesmo ano matar a personagem na última história de Fritz the Cat. Tal assassínio, porém, não evitou um segundo filme The Nine Lives of Fritz the Cat, menos politizado do que o filme realizado por Ralph Bakshi, mas explorando sobretudo o carácter sexual das suas aventuras e a sua familiaridade com as drogas alucinogéneas. A banda sonora de Fritz the Cat é alimentada pelo blues, rock, jazz e algum funk, de Bo Didley a Billie Holliday, passando por Charles Earland. Ouçamos alguns excertos.

Louis Wain

Decorria o ano de 1992 quando David Tibet, financeiramente apetrechado após o sucesso de “Thunder Perfect Mind”, aceitou o convite do seu amigo John Balance para uma sortida por Londres em busca de exemplares originais do artista e personalidade maior do ocultismo britânico, Austin Osman Spare. Enquanto desinteressadamente avaliava as mercadorias do comerciante de arte Henry Boxer, o olhar de David Tibet recaiu num quadro muito particular, cujo incompreensível fascínio que nele despertou viria transformar-se numa obsessiva paixão duradoira que, pictórica e liricamente, permeou toda a obra subsequente do projecto Current 93. Tratava-se de “Entrenched”, uma representação de um gato antropomórfico de olhos esbugalhados, envergando um uniforme militar, com um cigarro na sua patinha, que acenava para a sua pátria de uma longínqua trincheira da primeira grande guerra. No verso da pintura, algumas linhas haviam sido escrevinhadas pelo artista: “Safe from the match-making mamas – Hello, you girls! How are you?” e estas palavras, por seu turno, haveriam de inspirar os seguintes versos de “The Bloodbells Chime” do disco “All The Pretty Little Horses”: “Tommy Katkins still sends His regards/frozen for ever on some animal Somme/The last thing on His mind is marriage/but the call of Home and Heart”. O autor desta pintura era Louis Wain, um de muitos artistas, escritores, pintores, ou músicos que, durante a sua longa carreira, David Tibet desenterrou da obscuridade e incorporou no panteão da sua complexa mitologia pessoal. Tiny Tim e Count Stenbock, Antony Hegarty e as irmãs Shirley e Dolly Collins, Thomas Ligotti e William Lawes, todos eles foram amados profundamente pelo mentor dos Current 93, e todos eles acabaram por corresponder, directa ou indirectamente, vertendo generosamente a sua influência sobre a obra do músico.

Capa da compilação "Seven Seals" de 1996


Louis William Wain nasceu a 5 de Agosto de 1860 em Clerkenwell em Londres, primogénito de uma fratria de seis filhos, da qual era o único homem. A fatalidade e o infortúnio cedo se acercaram de Louis Wain para nunca mais o abandonarem. O infante nasceu com um lábio leporino, e o médico que o observou na altura ordenou aos pais que o filho não deveria ir à escola até completar dez anos de idade. Durante a sua juventude pouco investiu nos trabalhos escolares, optando, sempre que podia, por consumir o tempo vagueando pelas ruas de Londres. Mais tarde ingressou na West London School of Art e acabou por se tornar professor nessa escola. Aos 20 anos, Louis Wain sofre a primeira grande perda da sua vida, a morte do pai, que teve como corolário a necessidade de assumir para si a responsabilidade pelo sustento da mãe e irmãs. Pouco tempo depois, deixa o seu emprego de professor para se dedicar inteiramente à pintura que, no princípio, tinha por objecto diversos animais e cenas pastorais, de tonalidades impressionistas. Ilustrações representativas desta primeira fase podem ser encontradas na capa do primeiro disco da trilogia “The Inmost Light”, intitulado “Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)” de Current 93, e numa compilação editada pela Durtro, em 1999, que albergava, para além do projecto de Tibet, músicas de Michael Casmore e Christoph Heemann.


Capa de "Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)" de 1995


No passar das suas vinte e três primaveras Louis Wain casa com Emily Richardson, tutora das suas irmãs e dez anos mais velha, mas esta ligação, considerada escandalosa na altura, teria uma curta duração pois, três anos volvidos sobre o matrimónio, a família recém formada recebe a indesejada visita da morte, que rouba ao pintor a sua esposa. É durante este período que Wain descobre o objecto de inspiração que viria a definir a sua carreira: os felinos domésticos. Durante a doença, Emily sentia-se confortada na dor pelas tropelias do seu gato de estimação Peter The Great, e Louis Wain ensinou-lhe truques, como por exemplo usar óculos e fingir ler um livro, para divertir a sua esposa moribunda. Mais tarde escreveria as seguintes palavras “To him properly belongs the foundation of my career, the developments of my initial efforts, and the establishing of my work”.


Capa de "When The May Rain Comes" de 1996

Em 1886 surge o primeiro desenho de um gato antropomorfizado, “A Kittes’ Christmas Party”, mas neste os felinos ainda permanecem apoiados nas suas quatro patas, sem roupas, e sem as expressões faciais humanas que viriam a tipificar o trabalho de Wain. Com o tempo, os gatos começariam a caminhar erectos, a apresentar expressões emocionais levadas ao extremo e a usar vestimentas contemporâneas. Tocavam instrumentos, dançavam, sorriam e choravam. Contorciam-se em esgares de dor por qualquer maleita e olhavam com receio o médico que os iria tratar. Jogavam cartas, fumavam e divertiam-se numa saída nocturna. Posavam austeros no jardim da sua propriedade para o pincel de Wain ou então deixavam-se surpreender numa qualquer situação do quotidiano. A antropomorfização de animais era algo comum e valorizado na Inglaterra Vitoriana, e Wain era um artista prolífico, produzindo centenas de desenhos por ano. As suas ilustrações cobriam as páginas de livros infantis, jornais e magazines, e, entre 1901 e 1915, passaram a ser compiladas no Louis Wain Annual. Os desenhos parodiavam o comportamento humano, nas suas expressões mais triviais, satirizando modas e costumes da altura e veiculando uma mensagem moral muito vincada: “I take a sketch-book to a restaurant, or other public place, and draw the people in their different positions as cats, getting as near to their human characteristics as possible. This gives me doubly nature, and these studies I think [to be] my best humorous work.” Empenhado e preocupado com o bem-estar da sua musa felina, Wain envolveu-se com uma serie de organizações como o National Cat Club, o Governing Council of Our Dumb Friends League, a Society for the Protection of Cats, e a Anti-Vivisection Society.

Capa da reedição de 1994 de "Thunder Perfect Mind"

Apesar da popularidade, Louis Wain nunca soube capitalizar os ganhos do seu trabalho nem organizar-se financeiramente. Caía com ingenuidade nas maquinações de indivíduos mal intencionados e mostrava-se incapaz de sobreviver no meio publicitário, vendendo os seus desenhos sem, por exemplo, se preocupar com os direitos de reprodução. Era facilmente induzido por algum espertalhão a apostar numa invenção mirabolante ou qualquer outro esquema para fazer dinheiro. Em 1907 viaja até Nova Iorque, onde faz alguns desenhos para jornais, mas acaba por regressar a casa ainda mais pobre depois de uma série de fracassados investimentos imprudentes. O regresso a Inglaterra, que seria ainda pautado pela morte da mãe, pontuou o início da deterioração da sua saúde mental.


Capa de uma compilação com Current 93, Michael Cashmore e Christoph Heemann de 1999

Louis Wain era descrito como uma pessoa singular e original mas ao mesmo tempo charmosa, alguém que por vezes parecia ter dificuldade em separar factos de fantasias. A doença mental já havia assolado a sua família quando, em 1900, a sua irmã mais nova deu entrada numa instituição psiquiátrica com um quadro delirante (acreditava padecer de um tipo de lepra letal e afirmava ter assistido a vários homicídios). Wain, que sempre havia sido uma pessoa afável, tornou-se então violento e profundamente convencido que entidades espirituais projectavam correntes etéreas sobre si. Tal como os seus adorados gatos, também ele acreditava “transbordar de electricidade”, que lhe era extirpada sem seu consentimento pelo tremular dos ecrãs de cinema. No ano em que a sua irmã foi internada, Wain escreveu: “[my cat] Peter is a small battery, my wife a larger one attracts energy from the smaller one; the passage of the fluid from one body to another generating heat […] Its main object in washing, to my mind, is just to complete an electrical circuit.” Durante este período passou longas temporadas a escrever fechado no quarto, e exemplos da sua prosa podem, por vezes, ser encontrados nas músicas de David Tibet, sendo um dos exemplos maiores dessa gentil e reverente apropriação, o texto “The Old Willows”, incluído no tema “Let Us Go To The Rose” de “Of Ruine Or Some Blazing Starre” de 1994:

“The old willows wrecked again & again in the hold of the woods held in close confinement all round the struggle for existance where the streams were constantly taken from their course by the roots of the old trees in the woods allowing no well stream the free course through until the whole of these fine old trees had got their whole water course directed by their own roots into each others roots in their own devious ways & so each time the bad weather conditions came the dell of the old popular willows received the whole rainfall & gave the roots of the old popular trees the worst conditions they could not recover from. The result was when the bad storms swept the ground downhill the whole of the upright branches of the populars were wrecked & wrenched off as none had sufficient root hold to do any good in holding as against the winds forcing both root & trunks & branch to give way. The ultimate result was as stated the cracking down of the branches & the breaking off of the main trunk as it had no side branches to help its leaves to support the whole tree. This gave the stubble growth of enforcing the trunk low down near the ground to spray out the small side branches & to develop in the trunk the further strength to enlarge the top of the trunk to enable the heavy branch growth to develop & to give out a large number o spray branches in all directions to keep control of the wind and also to stop the wind from further to destroy the old trees in its course the winds followed the well streams & then got the clear run free of the trees until a run of heavy old tree trunks guided them out again into the ground where the rising ground destroyed them by holding them in face clear of the winds the night mist.”

Capa da reedição de "Of Ruine Or Some Blazing Starre" de 2007. O pano de fundo consiste no texto original "The Old Willows" escrito por Louis Wain


Quando a situação se tornou insuportável para as irmãs que dele cuidavam, Wain é internado na ala dos pobres do Springfield Mental Hospital em Tooting. Um ano mais tarde a sua situação precária chegou aos ouvidos do público, gerando uma onda de apoio e solidariedade por parte de figuras como H.G. Wells ou o Primeiro-ministro Britânico da altura, que permitiram a Wain mudar-se para o Bethlem Royal Hospital em Southwark e, posteriormente, em 1930, para Napsbury Hospital em Hertfordshire, um local mais aprazível que continha um jardim e uma colónia de gatos, que muito devem ter agradado o pintor. Enquanto o quadro delirante ganhou terreno, as suas mudanças de humor decresceram gradualmente, e Wain continuou a desenhar por prazer. O seu trabalho neste período é marcado pela utilização de cores brilhantes, flores, e intrincados padrões abstractos, embora o sujeito primário – o gato – permanecesse inalterado.

Um conjunto de oito ilustrações de Louis Wain, coleccionadas pelo médico Walter Maclay, é muitas vezes utilizado como exemplificativo da continuidade entre produção artística e progressão na doença mental. Estes desenhos podem ser considerados psicadélicos por duas razões essenciais. Em primeiro lugar, seguindo de perto a definição de coisa psicadélica enquanto manifestação da mente, e se estas pinturas efectivamente traduzirem a evolução do quadro clínico de Wain, podemos afirmar que elas descrevem o mundo interior de um psicótico. Em segundo lugar, o epíteto de psicadélico assentará bem neste conjunto devido a um conjunto de caracteres em tudo comuns às criações figurativas paridas na contracultura da década de sessenta, tais como a utilização de padrões fractais, cores brilhantes e contrastantes, e uma grande atenção ao detalhe. Desconhece-se, contudo, a ordem cronológica pela qual Wain pintou estas figuras, já que elas não se encontram datadas, e Rodney Dale, autor de uma biografia sobre o pintor, critica veemente a crença de que estes desenhos podem ser usados como exemplos da deterioração da saúde mental: "Wain experimented with patterns and cats, and even quite late in life was still producing conventional cat pictures, perhaps 10 years after his [supposedly] 'later' productions which are patterns rather than cats.” Na capa do disco “The Seahorse Rears To Oblivion” de 2003, sobre um pano de fundo azul, com as cores originais na frente e o seu negativo nas costas, podemos encontrar um dos gatos psicadélicos de Wain desenhado em Napsbury, e apreciar a complexidade dos rendilhados multicolores que lhe dão vida.

Capa de "The Seahorse Rears to Oblivion" de 2002


Continuam a subsistir algumas dúvidas acerca do diagnóstico de Louis Wain. Alguns especulam que a esquizofrenia foi precipitada por toxoplasmose, uma infecção parasítica que e contraída através dos gatos. Michael Fitzgerald considera que era mais provável que Wain sofresse de síndrome de Asperger, referindo que embora as suas pinturas adquirissem uma tendência mais abstracta com o envelhecimento, as suas competências técnicas enquanto pintor não revelaram qualquer deterioração como seria de esperar num quadro degenerativo. Para além disso, alguns elementos de agnosia visual, um elemento chave nos casos de Asperger, foram identificados na sua pintura. O diagnóstico de Asperger, esse também levanta algumas dúvidas, nomeadamente devido a uma série de referências biográficas à personalidade afável e charmosa de Wain que muito mal assentam numa personalidade supostamente autista. A causa de morte, “complicações subsequentes a um acidente vascular cerebral”, poderá facultar algumas hipóteses ainda pouco consideradas. Um acidente vascular cerebral pode ser responsável pela agnosia visual se ocorrer numa zona do cérebro responsável pela percepção visual e pela integração de elementos, num circuito dorsal entre o occipital e o parietal. O estudo da relação entre doença mental e criação artística remonta aos primórdios da psiquiatria, e sem dúvida que uma investigação aprofundada da obra e vida de Louis Wain poderá ser um importante contributo para esta área. Contudo, tal extravasa em larga medida as possibilidades deste breve texto, pelo que concluo este pequeno aparte citando um psiquiatra que afirmava que a única diferença entre as criações de artistas doentes mentais e outros saudáveis era uma “inquietante sensação de estranheza”.
Em 2000, após vários anos a coleccionar os trabalhos de Louis Wain, David Tibet escreve um artigo sobre o pintor para a fanzine de Nick Cave, “The Witness” onde se podia ler: “Arched cats, wide-eyed, electric. Whilst Wain would scribble the titles of his early pieces on the back of his paintings as a guide to the printers, by the late 1920s, he would be reciting the litany of his ecstasies and pains: ‘Bounce the Ball still, softly round it on all sides. The goal is in each Kits eye. The ball fixes each eye open: It roles to each paws love; Bounced home, where it hides.’ The doors of Catland had opened wide, and he hurried inside, to his true home.”


Capa de "Birdsong In The Empire" de 2007

Não havia sido apenas Louis Wain que havia entrado neste reino alternativo, mas David Tibet também lhe fazia companhia, incluindo pinturas de felinos do artista inglês nas capas da reedição de 1994 de “Thunder Perfect Mind”, na compilação “Seven Seals” de 1996, no disco gravado ao vivo “Birdsong In The Empire” de 2007, e no single “When The May Rain Comes” de 1996. As referências a gatos nas letras, essas são incontáveis. O tema “The Seven Seals Are Revealed at the End of Time as Seven Bows: The Bloodbow, The Pissbow, The Painbow, The Faminebow, The Deathbow, The Angerbow and the HoHoHoHoBow” do disco “Lucifer Over London” de 1994 é dedicado à memória dos seus gatos: “Once I looked at the stares and they were all blood. This song is dedicated to the Soul of my beloved and most dear Cats MAO and RAO who are dead by the Grace of the LordNothing and sleep, I pray, in Louis Wain’s Paradise—Bounce the ball still Maoma and Raora… I slept I dreamed I dreamt a dream and They still lived”. E no disco “All The Pretty Little Horses”, uma das obras em que a enfatuação pelos gatos de Wain assume maior preponderância, David Tibet exclama: “Sell all You have: give it to the kittens/And pour the milk on Louis’ grave/And Catland, Sometimes Called Pussydom/Opens for You instantly – it’s the Inmost Light!” Uma iluminação despertada pela obra do homem que H.G. Wells descreveu magistralmente: “He has made the cat his own. He invented a cat style, a cat society, a whole cat world. English cats that do not look and live like Louis Wain cats are ashamed of themselves.”

Durante o programa dedicado a Louis Wain foi possível escutar:

Current 93 – “A Voice From Catland” (Of Ruine Or Some Blazing Starre, 1994)
Current 93 – “When The May Rain Comes” (When The May Rain Comes, 1996)
Current 93 – “Thunder Perfect Mind” (Thunder Perfect Mind, 1992)
Current 93 – “Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)” (Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight), 1995)
Current 93 – “Let Us Go To The Rose” (Of Ruine Or Some Blazing Starre, 1994)
Current 93 – “The Seahorse Rears To Oblivion” (The Seahorse Rears To Oblivion, 2002)
Current 93 – “The Seven Seals Are Revealed At The End Of Time As Seven Bows: The Bloodbow, The Pissbow, The Painbow, The Faminebow, The Deathbow, The Angerbow, The HoHoHoHoBow” (SixSixSix: SickSickSick, 2004)
Current 93 – “The Bloodbells Chime” (All The Pretty Little Horses, 1996)

Hiperligações:
Emissão em podcast pode ser escutada aqui

Svezia, Inferno e Paradiso (1968)

Pelo menos desde o fim da Idade Média, com Dante Alighieri, na Divina Comédia, que ficou provada a vocação dos italianos para explorar os lugares mais obscuros, mas também, os mais ofuscantes que a natureza humana povoa. Somente a estóica fibra de carácter, herdada de Cícero e Séneca, permitiria a um italiano atravessar recônditas paisagens onde a luz não chega, como o sulfuroso inferno, ou onde ela se reflecte num excesso luminoso mais próprio para obcecar do que para esclarecer, como no paraíso. Mas que sorriso lascivo esboçaria ou que esgar de terror contorceria o rosto de Dante se fosse obrigado a confrontar-se com as cabeças douradas das beldades indígenas ou o resplandecente mas gélido manto branco que oferece o cenário à distópica realidade social da Suécia no final dos anos sessenta? Um admirável mundo novo onde a aparente felicidade estampada nos rostos dos transeuntes, supostamente promovida pela liberdade das suas leis permissivas e pela paz de um sistema democrático e providencial, esconde o lado oculto dos seus excessos e da sua impiedade.



“Svezia, Inferno e Paradiso” é o produto da temeridade do realizador Luigi Scattini e da sua equipa que, em 1968, revelou a face escondida e purulenta de uma ilusão revolucionária – a social democracia -, povoada por uma tribo de anjos com tranças louras e generosas glândulas mamárias que demasiado facilmente se revelam. Para que finalidade se promove a educação sexual nas escolas e a liberdade de difusão de imagens pornográficas nas revistas e na televisão senão para gerar desvios e distorções nos espíritos inocentes daquelas jovens que acabam por se entregar à promiscuidade do “amor livre”, quando não mesmo à ignomínia contra-natural do lesbianismo, agravado pelo consumo de álcool e de drogas em clubes nocturnos, onde a syrinx dionisíaca da moda hippie perverte os sentidos em bacanais repletas de bustos desnudados? Já para não falar do acasalamento entre irmãos de sangue que abandonam a cidade para no campo bucólico profanarem os corpos com a sua relação incestuosa, ou daquela agente da polícia municipal que no luar da meia-noite se expõe às objectivas das câmaras fotográficas, ou ainda dos bandos de motociclistas que sustentam a sua perversidade com uma cadeia infinita de violação e estupro juvenil, mas também da degradação daqueles alcoólicos que são obrigados a recorrer aos urinóis públicos e à graxa de sapatos para suprir as necessidades num país que pune severamente a venda de licores, numa cidade, como Estocolmo, que tem os seus becos manchados do sangue dos jovens que não suportam mais viver num país onde nada lhes falta e onde têm demasiada liberdade!



Escandaloso? Sensacionalista? Incongruente? Exagerado? Todos esses epítetos assentam que nem uma luva neste pseudo-documentário, cujo género fora iniciado com “Mondo Cane”, de Paolo Cavara, em 1962, e popularizado na América por “Mondo Topless”, de Russ Meyer, de 1966. Na verdade, a hilariante perspectiva antropológica não faz senão perpetuar os clichés e preconceitos que na época havia relativamente à progressista sociedade sueca, distorcida pelas imagens eróticas e descomplexadas de “Mónika e o Desejo” (de I. Bergman), por exemplo, mas sobretudo pelas mentes apaixonadas, ainda que reprimidas, do universo machista e misógino da sociedade cristo-latina. Um apontamento particular para Piero Umiliani, o profícuo compositor da divertida banda sonora, onde surge a versão original do famosíssimo “Mah na mah na”, celebrizado mais tarde pelos “Marretas” de Jim Henson. Numa disposição lounge e easy-listening, Umiliani capta as modas musicais do momento, explorando a vaga hippie e pseudo-psicadélica que começava a contaminar a música ligeira, para sublinhar as cenas de deslumbramento sensual. Num projecto paralelo e obscuro, Braen’s Machine, juntamente com o talentoso guitarrista e assobiador Alessandro Alessandroni (o famoso assobio nas bandas sonoras de Ennio Morricone para filmes Western Spaghetti), nomeadamente no álbum "Underground" – a banda sonora de um filme inexistente -, a vaga psicadelizante é explorada ao extremo.

Lucifer Rising (Kenneth Anger/Beausoleil)

Em 1967, Kenneth Anger, que vivia e bebia nessa época a atmosfera do bairro de Haight Ashbury, em São Francisco, e que começava a preparar um novo projecto cinematográfico, “Lucifer Rising”, foi assistir a um concerto da banda psicadélica The Orkustra e ali reconheceu aquele que procurava. Certamente encantado pela aura resplandecente do guitarrista, Bobby Beausoleil, dirigiu-se-lhe no fim da performance e exclamou: “Tu és Lúcifer!” Contrariamente ao que transmite a cultura popular de tradição cristã, a etimologia e a história das religiões esclarece que Lúcifer é o “portador da luz”, uma divindade luminosa na antiguidade clássica, a estrela da manhã para os que se orientavam pelos astros ou, numa interpretação gnóstica, aquele que revelou o verdadeiro conhecimento aos homens, denunciando as ilusões do Demiurgo, o falso deus. No cruzamento inter-mitológico esotérico de tradição crowleiana, Lúcifer, o príncipe da aurora dourada, é por vezes associado ao deus egípcio Hórus, uma divindade solar que teria revelado ao próprio Aleister Crowley um novo tempo, uma nova era, o Aión do Aquário, uma época de paz e conhecimento de que ele haveria de ser o profeta.



Anger, um discípulo convicto de Crowley, preparava então, no final dos anos 60, um hino fílmico à ascensão de Lúcifer, ao nascimento de uma nova idade cósmica, invocado por Ísis, Osíris, Lilith (desempenhada pela célebre Marianne Faithful), pelo Adeptus de Lúcifer e pelo Magus (representado pelo próprio Kenneth). Bobby Beausoleil começara por ser o Lúcifer do filme e também o compositor da banda sonora do filme que preparava juntamente com a sua nova banda The Magickal Powerhouse of Oz – já que, entretanto os The Orkustra tinham acabado. Um desentendimento entre esses dois espíritos solares – Anger e Beausoleil – impediu não só a continuação do projecto como provocou o desaparecimento misterioso de algumas bobinas do filme. Anger acusou Beausoleil de as ter roubado e enterrado no deserto e decidiu acabar com a sua actividade artística, emigrando para a Europa e escrevendo um obituário no Village Voice. Em Inglaterra, encontra os Rolling Stones e gera uma amizade com Mick Jagger que inspirou mais tarde “Sympathy for the Devil” e permitiu a colaboração do músico num projecto alternativo de Kenneth Anger, “Invocation of my Demon Brother”(1969), onde foi usado o material que sobreviveu das filmagens feitas em São Francisco, numa montagem rápida, frenética e alucinadamente m(h)istérica que, juntamente com a banda sonora feita no sintetizador Moog por Jagger, cria uma obra-prima do cinema experimental e de vanguarda da época psicadélica.



Entretanto, de regresso à Califórnia, Anger retoma o projecto de “Lucifer Rising” e encomenda a banda sonora ao famoso guitarrista dos Led Zeppelin, Jimmy Page, o dono do castelo escocês que outrora pertencera ao próprio Crowley. Enquanto em pouco tempo, Crowley filma nos carismáticos lugares de Luxor, Karnak ou Stonehenge, Jimmy Page demora mais de três anos para apresentar vinte e tal minutos de monótonos “drones” que desagradam a Anger e que o descarta do projecto, acusando-o ainda de ele estar demasiado dependente da “Dama Branca” para produzir algo de válido artisticamente. Kenneth Anger reconcilia-se com Bobby Beausoleil que entretanto havia sido preso por ter assassinado um dealer e por se ter associado à família Manson e que, não obstante, reintegra o projecto da banda sonora, a qual foi composta e gravada integralmente na prisão de Tracy, na Califórnia, com a colaboração de outros prisioneiros – The Freedom Orchestra, o agrupamento que completou a versão definitiva da banda sonora de um filme que apenas se tornaria público em 1980, quase 14 anos após as primeiras filmagens.

O filme é uma média-metragem de 28 minutos, com uma montagem ainda delirante mas bem mais subtil do que a de “Invocation of my Demon Brother”. O tom da composição é bastante onírico e joga sobretudo com as forças simbólica e arquetipal das imagens. Os movimentos majestáticos, quase solenes, das figuras mitológicas, nos cenários colossais do Egipto, acompanham o ritmo evocativo das forças da natureza: o curso lento da lava vulcânica, a subida das águas do rio movidas pelo inelutável magnetismo dos astros, a interrupção do dia pela cópula cósmica de um eclipse ou o eclodir de um ovo de crocodilo…

Para ver o filme todo: no google video

Lucky Dragons


No dia 9 de Agosto de 1945, Jim Graham, um jovem prisioneiro num campo de concentração, próximo de Shanghai, vê uma luz intensa que se espalha em segundos pelo céu e que, como dirá mais tarde, se assemelhava a um flash, como se Deus acabasse de tirar uma fotografia à humanidade. Essa luz salvífica que fez acabar a guerra e que libertou o rapazinho da sua prisão era a bomba atómica e só a visão distópica de James Graham Ballard, o escritor britânico falecido esta semana, poderia descrevê-la assim. Quase uma década depois daquela deflagração atómica, um barco de pesca de atum japonês – o Daigo Fukuryu Maru, ou seja, o Dragão Sortudo 5 – foi afectado radioactivamente pela explosão de uma bomba de hidrogénio nos testes do atol de Bikini, próximo das ilhas Marshall. Pouco menos de um ano depois haveria de morrer Kuboyama Aikichi, um dos tripulantes, em consequência da contaminação, tornando-se assim a primeira vítima fatal conhecida da bomba de hidrogénio, embora tivesse deixado expresso o desejo inocente de ser a última vítima de uma bomba nuclear. E foi precisamente num espírito pacifista e anti-nuclear que Luke Fischbeck adoptou o nome de Lucky Dragons para o seu projecto musical com Sarah Rara e com todos aqueles que são convidados a colaborar, já que uma das singularidades desse projecto é o carácter colectivo e interactivo do seu processo criativo.


Ainda que os discos de estúdio se baseiem sobretudo num intenso trabalho de edição digital, os objectos sonoros (no sentido de Pierre Schaeffer) têm como origem captações acústicas de campo ou são construídos a partir de breves ritmos ou melodias feitas com instrumentos muitas vezes artesanais, objectos do quotidiano ou simplesmente encontrados na natureza. Trata-se nessa medida de música concreta, mas informada pela música folk, pelos ritmos da era micro-electrónica do glitch, pelos cantos tribais e expressões guturais dos xamanes, referindo-se muitos vezes à cultura local e híbrida da Califórnia que viu nascer e crescer Fischbeck. Tão mais difícil de catalogar o seu projecto quanto a sua vontade é, na verdade, transcender os géneros musicais, estilísticos, sociais e mesmo sexuais para fazer renascer um espírito comunitário ausente hodiernamente de uma sociedade absorvida pela gratificação instantânea e individual. Neste sentido, Lucky Dragons tem não só uma dimensão estética mas é também uma proposta política de transformação do quotidiano, suspendendo-o em momentos que anulem a ironia e o cinismo de um público que já viu tudo e tudo experimentou. Nas performances ao vivo, não apenas em concertos mas ainda nas frequentes instalações em galerias e noutros lugares de exposição pública, a assistência é convidada a participar no processo de criação com os “artistas” mas também entre si. Por exemplo no projecto “make a baby”, cada pessoa só produzirá som se segurar ao mesmo tempo nos cabos e tocar noutra pessoa que também a eles esteja ligada, construindo uma trama corporal e tecnológica que vai ser interpretada pelo software de edição e processamento.



Paralelamente ao projecto musical Lucky Dragons existe uma vertente visual – o Sumi Ink Club – e uma plataforma de criação virtual e comunitária na internet chamada Glaciers of Nice. A expressão visual e audiovisual, recupera o primitivismo e a inocência da arte bruta e infantil, iluminada psicadelicamente pelo pixel electrónico da era digital e tingido pela espontaneidade do DIY, como bem exprimiam alguns invólucros manufacturados dos primeiros discos CDr, que continham pétalas das primeiras flores da primavera.



Apesar de o projecto ter começado em 1999, até Novembro de 2008 contava já com 19 discos criados, com uma base de trabalho semelhante mas resultados finais de características aparentemente muito diferentes. Neste crónica, escutou-se “Dirty War” do álbum “A Sewing Circle” de 2005, mas logo de seguida pudemos escutar “Que cabeça pequeña” do EP de 2004 “Norteñas”, um piscar de olhos à cultura hispânica de San Diego, cidade onde o grupo está sediado. “Complement song” do álbum “Widows” de 2006 incorpora o idioma da canção pop e depois “Aluvum Te Na Hagaru”, do mesmo disco, parece reproduzir a canção de embalar com o ritmo de um barquinho indefeso flutuando na proximidade de um atol radioactivo. A 3ª faixa de “Hawks and Sparrows”, um disco de 2003 disponível para download gratuito no site do mesmo nome foi composta a partir de gravações de campo em manifestações anti-guerra em várias cidades americans. Finalmente escutámos do seu álbum de 2008, “Dream Island Laughing Language”, que remete para uma ilha artificial criada próximo de Tóquio para albergar lixo radioactivo, nomeadamente o famoso barco de pesca Lucky Dragon, a faixa “Mirror Friends”.

O site dos lucky dragons: Hawks and Sparrows
A vertente visual: Sumi Ink Club
A comunidade virtual: Glaciers of Nice

Master Musicians of Joujouka: Segundo Festival Anual, 5-7 Junho 2009


Há 50 anos foi publicado em Paris Naked Lunch, obra incontornável de William S Burroughs. O livro foi escrito durante o período em que o autor viveu em Tânger, Marrocos, no qual contactou com os Master Musicians of Joujouka pela mão de Brion Gysin, apelidando-os então como "um grupo rock'n roll com 4000 anos".

Este será o mote para o Segundo Festival Anual dos Master Musicians of Joujouka, depois de em 2008 a edição inaugural ter sido dedicada aos 40 anos da estadia de Brian Jones na aldeia, de onde saíu a mítica gravação Brian Jones presents the Pipes of Pan at Joujouka. O evento deste ano decorrerá durante o fim-de-semana de 5 a 7 de Junho, na aldeia de Jajouka, nas montanhas Ahl Srif do nordeste marroquino, com os Master Musicians a tocarem todas as noites, incluindo o ancestral ritual Boujeloud. Os convidados ficarão com os músicos e respectivas famílias, em suas casas, podendo assim experienciar o transe musical sufi no seu contexto milenar. A participação inclui as refeições preparadas pelos locais.

O festival acolhe 70 pessoas.

Informações e reservas/compra de bilhetes aqui.