Lucky Dragons


No dia 9 de Agosto de 1945, Jim Graham, um jovem prisioneiro num campo de concentração, próximo de Shanghai, vê uma luz intensa que se espalha em segundos pelo céu e que, como dirá mais tarde, se assemelhava a um flash, como se Deus acabasse de tirar uma fotografia à humanidade. Essa luz salvífica que fez acabar a guerra e que libertou o rapazinho da sua prisão era a bomba atómica e só a visão distópica de James Graham Ballard, o escritor britânico falecido esta semana, poderia descrevê-la assim. Quase uma década depois daquela deflagração atómica, um barco de pesca de atum japonês – o Daigo Fukuryu Maru, ou seja, o Dragão Sortudo 5 – foi afectado radioactivamente pela explosão de uma bomba de hidrogénio nos testes do atol de Bikini, próximo das ilhas Marshall. Pouco menos de um ano depois haveria de morrer Kuboyama Aikichi, um dos tripulantes, em consequência da contaminação, tornando-se assim a primeira vítima fatal conhecida da bomba de hidrogénio, embora tivesse deixado expresso o desejo inocente de ser a última vítima de uma bomba nuclear. E foi precisamente num espírito pacifista e anti-nuclear que Luke Fischbeck adoptou o nome de Lucky Dragons para o seu projecto musical com Sarah Rara e com todos aqueles que são convidados a colaborar, já que uma das singularidades desse projecto é o carácter colectivo e interactivo do seu processo criativo.


Ainda que os discos de estúdio se baseiem sobretudo num intenso trabalho de edição digital, os objectos sonoros (no sentido de Pierre Schaeffer) têm como origem captações acústicas de campo ou são construídos a partir de breves ritmos ou melodias feitas com instrumentos muitas vezes artesanais, objectos do quotidiano ou simplesmente encontrados na natureza. Trata-se nessa medida de música concreta, mas informada pela música folk, pelos ritmos da era micro-electrónica do glitch, pelos cantos tribais e expressões guturais dos xamanes, referindo-se muitos vezes à cultura local e híbrida da Califórnia que viu nascer e crescer Fischbeck. Tão mais difícil de catalogar o seu projecto quanto a sua vontade é, na verdade, transcender os géneros musicais, estilísticos, sociais e mesmo sexuais para fazer renascer um espírito comunitário ausente hodiernamente de uma sociedade absorvida pela gratificação instantânea e individual. Neste sentido, Lucky Dragons tem não só uma dimensão estética mas é também uma proposta política de transformação do quotidiano, suspendendo-o em momentos que anulem a ironia e o cinismo de um público que já viu tudo e tudo experimentou. Nas performances ao vivo, não apenas em concertos mas ainda nas frequentes instalações em galerias e noutros lugares de exposição pública, a assistência é convidada a participar no processo de criação com os “artistas” mas também entre si. Por exemplo no projecto “make a baby”, cada pessoa só produzirá som se segurar ao mesmo tempo nos cabos e tocar noutra pessoa que também a eles esteja ligada, construindo uma trama corporal e tecnológica que vai ser interpretada pelo software de edição e processamento.



Paralelamente ao projecto musical Lucky Dragons existe uma vertente visual – o Sumi Ink Club – e uma plataforma de criação virtual e comunitária na internet chamada Glaciers of Nice. A expressão visual e audiovisual, recupera o primitivismo e a inocência da arte bruta e infantil, iluminada psicadelicamente pelo pixel electrónico da era digital e tingido pela espontaneidade do DIY, como bem exprimiam alguns invólucros manufacturados dos primeiros discos CDr, que continham pétalas das primeiras flores da primavera.



Apesar de o projecto ter começado em 1999, até Novembro de 2008 contava já com 19 discos criados, com uma base de trabalho semelhante mas resultados finais de características aparentemente muito diferentes. Neste crónica, escutou-se “Dirty War” do álbum “A Sewing Circle” de 2005, mas logo de seguida pudemos escutar “Que cabeça pequeña” do EP de 2004 “Norteñas”, um piscar de olhos à cultura hispânica de San Diego, cidade onde o grupo está sediado. “Complement song” do álbum “Widows” de 2006 incorpora o idioma da canção pop e depois “Aluvum Te Na Hagaru”, do mesmo disco, parece reproduzir a canção de embalar com o ritmo de um barquinho indefeso flutuando na proximidade de um atol radioactivo. A 3ª faixa de “Hawks and Sparrows”, um disco de 2003 disponível para download gratuito no site do mesmo nome foi composta a partir de gravações de campo em manifestações anti-guerra em várias cidades americans. Finalmente escutámos do seu álbum de 2008, “Dream Island Laughing Language”, que remete para uma ilha artificial criada próximo de Tóquio para albergar lixo radioactivo, nomeadamente o famoso barco de pesca Lucky Dragon, a faixa “Mirror Friends”.

O site dos lucky dragons: Hawks and Sparrows
A vertente visual: Sumi Ink Club
A comunidade virtual: Glaciers of Nice

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