Louis Wain

Decorria o ano de 1992 quando David Tibet, financeiramente apetrechado após o sucesso de “Thunder Perfect Mind”, aceitou o convite do seu amigo John Balance para uma sortida por Londres em busca de exemplares originais do artista e personalidade maior do ocultismo britânico, Austin Osman Spare. Enquanto desinteressadamente avaliava as mercadorias do comerciante de arte Henry Boxer, o olhar de David Tibet recaiu num quadro muito particular, cujo incompreensível fascínio que nele despertou viria transformar-se numa obsessiva paixão duradoira que, pictórica e liricamente, permeou toda a obra subsequente do projecto Current 93. Tratava-se de “Entrenched”, uma representação de um gato antropomórfico de olhos esbugalhados, envergando um uniforme militar, com um cigarro na sua patinha, que acenava para a sua pátria de uma longínqua trincheira da primeira grande guerra. No verso da pintura, algumas linhas haviam sido escrevinhadas pelo artista: “Safe from the match-making mamas – Hello, you girls! How are you?” e estas palavras, por seu turno, haveriam de inspirar os seguintes versos de “The Bloodbells Chime” do disco “All The Pretty Little Horses”: “Tommy Katkins still sends His regards/frozen for ever on some animal Somme/The last thing on His mind is marriage/but the call of Home and Heart”. O autor desta pintura era Louis Wain, um de muitos artistas, escritores, pintores, ou músicos que, durante a sua longa carreira, David Tibet desenterrou da obscuridade e incorporou no panteão da sua complexa mitologia pessoal. Tiny Tim e Count Stenbock, Antony Hegarty e as irmãs Shirley e Dolly Collins, Thomas Ligotti e William Lawes, todos eles foram amados profundamente pelo mentor dos Current 93, e todos eles acabaram por corresponder, directa ou indirectamente, vertendo generosamente a sua influência sobre a obra do músico.

Capa da compilação "Seven Seals" de 1996


Louis William Wain nasceu a 5 de Agosto de 1860 em Clerkenwell em Londres, primogénito de uma fratria de seis filhos, da qual era o único homem. A fatalidade e o infortúnio cedo se acercaram de Louis Wain para nunca mais o abandonarem. O infante nasceu com um lábio leporino, e o médico que o observou na altura ordenou aos pais que o filho não deveria ir à escola até completar dez anos de idade. Durante a sua juventude pouco investiu nos trabalhos escolares, optando, sempre que podia, por consumir o tempo vagueando pelas ruas de Londres. Mais tarde ingressou na West London School of Art e acabou por se tornar professor nessa escola. Aos 20 anos, Louis Wain sofre a primeira grande perda da sua vida, a morte do pai, que teve como corolário a necessidade de assumir para si a responsabilidade pelo sustento da mãe e irmãs. Pouco tempo depois, deixa o seu emprego de professor para se dedicar inteiramente à pintura que, no princípio, tinha por objecto diversos animais e cenas pastorais, de tonalidades impressionistas. Ilustrações representativas desta primeira fase podem ser encontradas na capa do primeiro disco da trilogia “The Inmost Light”, intitulado “Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)” de Current 93, e numa compilação editada pela Durtro, em 1999, que albergava, para além do projecto de Tibet, músicas de Michael Casmore e Christoph Heemann.


Capa de "Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)" de 1995


No passar das suas vinte e três primaveras Louis Wain casa com Emily Richardson, tutora das suas irmãs e dez anos mais velha, mas esta ligação, considerada escandalosa na altura, teria uma curta duração pois, três anos volvidos sobre o matrimónio, a família recém formada recebe a indesejada visita da morte, que rouba ao pintor a sua esposa. É durante este período que Wain descobre o objecto de inspiração que viria a definir a sua carreira: os felinos domésticos. Durante a doença, Emily sentia-se confortada na dor pelas tropelias do seu gato de estimação Peter The Great, e Louis Wain ensinou-lhe truques, como por exemplo usar óculos e fingir ler um livro, para divertir a sua esposa moribunda. Mais tarde escreveria as seguintes palavras “To him properly belongs the foundation of my career, the developments of my initial efforts, and the establishing of my work”.


Capa de "When The May Rain Comes" de 1996

Em 1886 surge o primeiro desenho de um gato antropomorfizado, “A Kittes’ Christmas Party”, mas neste os felinos ainda permanecem apoiados nas suas quatro patas, sem roupas, e sem as expressões faciais humanas que viriam a tipificar o trabalho de Wain. Com o tempo, os gatos começariam a caminhar erectos, a apresentar expressões emocionais levadas ao extremo e a usar vestimentas contemporâneas. Tocavam instrumentos, dançavam, sorriam e choravam. Contorciam-se em esgares de dor por qualquer maleita e olhavam com receio o médico que os iria tratar. Jogavam cartas, fumavam e divertiam-se numa saída nocturna. Posavam austeros no jardim da sua propriedade para o pincel de Wain ou então deixavam-se surpreender numa qualquer situação do quotidiano. A antropomorfização de animais era algo comum e valorizado na Inglaterra Vitoriana, e Wain era um artista prolífico, produzindo centenas de desenhos por ano. As suas ilustrações cobriam as páginas de livros infantis, jornais e magazines, e, entre 1901 e 1915, passaram a ser compiladas no Louis Wain Annual. Os desenhos parodiavam o comportamento humano, nas suas expressões mais triviais, satirizando modas e costumes da altura e veiculando uma mensagem moral muito vincada: “I take a sketch-book to a restaurant, or other public place, and draw the people in their different positions as cats, getting as near to their human characteristics as possible. This gives me doubly nature, and these studies I think [to be] my best humorous work.” Empenhado e preocupado com o bem-estar da sua musa felina, Wain envolveu-se com uma serie de organizações como o National Cat Club, o Governing Council of Our Dumb Friends League, a Society for the Protection of Cats, e a Anti-Vivisection Society.

Capa da reedição de 1994 de "Thunder Perfect Mind"

Apesar da popularidade, Louis Wain nunca soube capitalizar os ganhos do seu trabalho nem organizar-se financeiramente. Caía com ingenuidade nas maquinações de indivíduos mal intencionados e mostrava-se incapaz de sobreviver no meio publicitário, vendendo os seus desenhos sem, por exemplo, se preocupar com os direitos de reprodução. Era facilmente induzido por algum espertalhão a apostar numa invenção mirabolante ou qualquer outro esquema para fazer dinheiro. Em 1907 viaja até Nova Iorque, onde faz alguns desenhos para jornais, mas acaba por regressar a casa ainda mais pobre depois de uma série de fracassados investimentos imprudentes. O regresso a Inglaterra, que seria ainda pautado pela morte da mãe, pontuou o início da deterioração da sua saúde mental.


Capa de uma compilação com Current 93, Michael Cashmore e Christoph Heemann de 1999

Louis Wain era descrito como uma pessoa singular e original mas ao mesmo tempo charmosa, alguém que por vezes parecia ter dificuldade em separar factos de fantasias. A doença mental já havia assolado a sua família quando, em 1900, a sua irmã mais nova deu entrada numa instituição psiquiátrica com um quadro delirante (acreditava padecer de um tipo de lepra letal e afirmava ter assistido a vários homicídios). Wain, que sempre havia sido uma pessoa afável, tornou-se então violento e profundamente convencido que entidades espirituais projectavam correntes etéreas sobre si. Tal como os seus adorados gatos, também ele acreditava “transbordar de electricidade”, que lhe era extirpada sem seu consentimento pelo tremular dos ecrãs de cinema. No ano em que a sua irmã foi internada, Wain escreveu: “[my cat] Peter is a small battery, my wife a larger one attracts energy from the smaller one; the passage of the fluid from one body to another generating heat […] Its main object in washing, to my mind, is just to complete an electrical circuit.” Durante este período passou longas temporadas a escrever fechado no quarto, e exemplos da sua prosa podem, por vezes, ser encontrados nas músicas de David Tibet, sendo um dos exemplos maiores dessa gentil e reverente apropriação, o texto “The Old Willows”, incluído no tema “Let Us Go To The Rose” de “Of Ruine Or Some Blazing Starre” de 1994:

“The old willows wrecked again & again in the hold of the woods held in close confinement all round the struggle for existance where the streams were constantly taken from their course by the roots of the old trees in the woods allowing no well stream the free course through until the whole of these fine old trees had got their whole water course directed by their own roots into each others roots in their own devious ways & so each time the bad weather conditions came the dell of the old popular willows received the whole rainfall & gave the roots of the old popular trees the worst conditions they could not recover from. The result was when the bad storms swept the ground downhill the whole of the upright branches of the populars were wrecked & wrenched off as none had sufficient root hold to do any good in holding as against the winds forcing both root & trunks & branch to give way. The ultimate result was as stated the cracking down of the branches & the breaking off of the main trunk as it had no side branches to help its leaves to support the whole tree. This gave the stubble growth of enforcing the trunk low down near the ground to spray out the small side branches & to develop in the trunk the further strength to enlarge the top of the trunk to enable the heavy branch growth to develop & to give out a large number o spray branches in all directions to keep control of the wind and also to stop the wind from further to destroy the old trees in its course the winds followed the well streams & then got the clear run free of the trees until a run of heavy old tree trunks guided them out again into the ground where the rising ground destroyed them by holding them in face clear of the winds the night mist.”

Capa da reedição de "Of Ruine Or Some Blazing Starre" de 2007. O pano de fundo consiste no texto original "The Old Willows" escrito por Louis Wain


Quando a situação se tornou insuportável para as irmãs que dele cuidavam, Wain é internado na ala dos pobres do Springfield Mental Hospital em Tooting. Um ano mais tarde a sua situação precária chegou aos ouvidos do público, gerando uma onda de apoio e solidariedade por parte de figuras como H.G. Wells ou o Primeiro-ministro Britânico da altura, que permitiram a Wain mudar-se para o Bethlem Royal Hospital em Southwark e, posteriormente, em 1930, para Napsbury Hospital em Hertfordshire, um local mais aprazível que continha um jardim e uma colónia de gatos, que muito devem ter agradado o pintor. Enquanto o quadro delirante ganhou terreno, as suas mudanças de humor decresceram gradualmente, e Wain continuou a desenhar por prazer. O seu trabalho neste período é marcado pela utilização de cores brilhantes, flores, e intrincados padrões abstractos, embora o sujeito primário – o gato – permanecesse inalterado.

Um conjunto de oito ilustrações de Louis Wain, coleccionadas pelo médico Walter Maclay, é muitas vezes utilizado como exemplificativo da continuidade entre produção artística e progressão na doença mental. Estes desenhos podem ser considerados psicadélicos por duas razões essenciais. Em primeiro lugar, seguindo de perto a definição de coisa psicadélica enquanto manifestação da mente, e se estas pinturas efectivamente traduzirem a evolução do quadro clínico de Wain, podemos afirmar que elas descrevem o mundo interior de um psicótico. Em segundo lugar, o epíteto de psicadélico assentará bem neste conjunto devido a um conjunto de caracteres em tudo comuns às criações figurativas paridas na contracultura da década de sessenta, tais como a utilização de padrões fractais, cores brilhantes e contrastantes, e uma grande atenção ao detalhe. Desconhece-se, contudo, a ordem cronológica pela qual Wain pintou estas figuras, já que elas não se encontram datadas, e Rodney Dale, autor de uma biografia sobre o pintor, critica veemente a crença de que estes desenhos podem ser usados como exemplos da deterioração da saúde mental: "Wain experimented with patterns and cats, and even quite late in life was still producing conventional cat pictures, perhaps 10 years after his [supposedly] 'later' productions which are patterns rather than cats.” Na capa do disco “The Seahorse Rears To Oblivion” de 2003, sobre um pano de fundo azul, com as cores originais na frente e o seu negativo nas costas, podemos encontrar um dos gatos psicadélicos de Wain desenhado em Napsbury, e apreciar a complexidade dos rendilhados multicolores que lhe dão vida.

Capa de "The Seahorse Rears to Oblivion" de 2002


Continuam a subsistir algumas dúvidas acerca do diagnóstico de Louis Wain. Alguns especulam que a esquizofrenia foi precipitada por toxoplasmose, uma infecção parasítica que e contraída através dos gatos. Michael Fitzgerald considera que era mais provável que Wain sofresse de síndrome de Asperger, referindo que embora as suas pinturas adquirissem uma tendência mais abstracta com o envelhecimento, as suas competências técnicas enquanto pintor não revelaram qualquer deterioração como seria de esperar num quadro degenerativo. Para além disso, alguns elementos de agnosia visual, um elemento chave nos casos de Asperger, foram identificados na sua pintura. O diagnóstico de Asperger, esse também levanta algumas dúvidas, nomeadamente devido a uma série de referências biográficas à personalidade afável e charmosa de Wain que muito mal assentam numa personalidade supostamente autista. A causa de morte, “complicações subsequentes a um acidente vascular cerebral”, poderá facultar algumas hipóteses ainda pouco consideradas. Um acidente vascular cerebral pode ser responsável pela agnosia visual se ocorrer numa zona do cérebro responsável pela percepção visual e pela integração de elementos, num circuito dorsal entre o occipital e o parietal. O estudo da relação entre doença mental e criação artística remonta aos primórdios da psiquiatria, e sem dúvida que uma investigação aprofundada da obra e vida de Louis Wain poderá ser um importante contributo para esta área. Contudo, tal extravasa em larga medida as possibilidades deste breve texto, pelo que concluo este pequeno aparte citando um psiquiatra que afirmava que a única diferença entre as criações de artistas doentes mentais e outros saudáveis era uma “inquietante sensação de estranheza”.
Em 2000, após vários anos a coleccionar os trabalhos de Louis Wain, David Tibet escreve um artigo sobre o pintor para a fanzine de Nick Cave, “The Witness” onde se podia ler: “Arched cats, wide-eyed, electric. Whilst Wain would scribble the titles of his early pieces on the back of his paintings as a guide to the printers, by the late 1920s, he would be reciting the litany of his ecstasies and pains: ‘Bounce the Ball still, softly round it on all sides. The goal is in each Kits eye. The ball fixes each eye open: It roles to each paws love; Bounced home, where it hides.’ The doors of Catland had opened wide, and he hurried inside, to his true home.”


Capa de "Birdsong In The Empire" de 2007

Não havia sido apenas Louis Wain que havia entrado neste reino alternativo, mas David Tibet também lhe fazia companhia, incluindo pinturas de felinos do artista inglês nas capas da reedição de 1994 de “Thunder Perfect Mind”, na compilação “Seven Seals” de 1996, no disco gravado ao vivo “Birdsong In The Empire” de 2007, e no single “When The May Rain Comes” de 1996. As referências a gatos nas letras, essas são incontáveis. O tema “The Seven Seals Are Revealed at the End of Time as Seven Bows: The Bloodbow, The Pissbow, The Painbow, The Faminebow, The Deathbow, The Angerbow and the HoHoHoHoBow” do disco “Lucifer Over London” de 1994 é dedicado à memória dos seus gatos: “Once I looked at the stares and they were all blood. This song is dedicated to the Soul of my beloved and most dear Cats MAO and RAO who are dead by the Grace of the LordNothing and sleep, I pray, in Louis Wain’s Paradise—Bounce the ball still Maoma and Raora… I slept I dreamed I dreamt a dream and They still lived”. E no disco “All The Pretty Little Horses”, uma das obras em que a enfatuação pelos gatos de Wain assume maior preponderância, David Tibet exclama: “Sell all You have: give it to the kittens/And pour the milk on Louis’ grave/And Catland, Sometimes Called Pussydom/Opens for You instantly – it’s the Inmost Light!” Uma iluminação despertada pela obra do homem que H.G. Wells descreveu magistralmente: “He has made the cat his own. He invented a cat style, a cat society, a whole cat world. English cats that do not look and live like Louis Wain cats are ashamed of themselves.”

Durante o programa dedicado a Louis Wain foi possível escutar:

Current 93 – “A Voice From Catland” (Of Ruine Or Some Blazing Starre, 1994)
Current 93 – “When The May Rain Comes” (When The May Rain Comes, 1996)
Current 93 – “Thunder Perfect Mind” (Thunder Perfect Mind, 1992)
Current 93 – “Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)” (Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight), 1995)
Current 93 – “Let Us Go To The Rose” (Of Ruine Or Some Blazing Starre, 1994)
Current 93 – “The Seahorse Rears To Oblivion” (The Seahorse Rears To Oblivion, 2002)
Current 93 – “The Seven Seals Are Revealed At The End Of Time As Seven Bows: The Bloodbow, The Pissbow, The Painbow, The Faminebow, The Deathbow, The Angerbow, The HoHoHoHoBow” (SixSixSix: SickSickSick, 2004)
Current 93 – “The Bloodbells Chime” (All The Pretty Little Horses, 1996)

Hiperligações:
Emissão em podcast pode ser escutada aqui

2 comments:

Ines Saraiva said...

pois pois, isso tudo é muito bonito... mas e o podcast?

Banake said...

Eu aprendi sobre Louis Wain por causa do David Tibet.