Tratava-se de “Entrenched”, uma representação de um gato antropomórfico de olhos esbugalhados, envergando um uniforme militar, com um cigarro na sua patinha, que acenava para a sua pátria de uma longínqua trincheira da primeira grande guerra. No verso da pintura, algumas linhas haviam sido escrevinhadas pelo artista: “Safe from the match-making mamas – Hello, you girls! How are you?” e estas palavras, por seu turno, haveriam de inspirar os seguintes versos de “The Bloodbells Chime” do disco “All The Pretty Little Horses”: “Tommy Katkins still sends His regards/frozen for ever on some animal Somme/The last thing on His mind is marriage/but the call of Home and Heart”. O autor desta pintura era Louis Wain, um de muitos artistas, escritores, pintores, ou músicos que, durante a sua longa carreira, David Tibet desenterrou da obscuridade e incorporou no panteão da sua complexa mitologia pessoal. Tiny Tim e Count Stenbock, Antony Hegarty e as irmãs Shirley e Dolly Collins, Thomas Ligotti e William Lawes, todos eles foram amados profundamente pelo mentor dos Current 93, e todos eles acabaram por corresponder, directa ou indirectamente, vertendo generosamente a sua influência sobre a obra do músico. 


Em 1886 surge o primeiro desenho de um gato antropomorfizado, “A Kittes’ Christmas Party”, mas neste os felinos ainda permanecem apoiados nas suas quatro patas, sem roupas, e sem as expressões faciais humanas que viriam a tipificar o trabalho de Wain. Com o tempo, os gatos começariam a caminhar erectos, a apresentar expressões emocionais levadas ao extremo e a usar vestimentas contemporâneas. Tocavam instrumentos, dançavam, sorriam e choravam. Contorciam-se em esgares de dor por qualquer maleita e olhavam com receio o médico que os iria tratar. Jogavam cartas, fumavam e divertiam-se numa saída nocturna. Posavam austeros no jardim da sua propriedade para o pincel de Wain ou então deixavam-se surpreender numa qualquer situação do quotidiano. A antropomorfização de animais era algo comum e valorizado na Inglaterra Vitoriana, e Wain era um artista prolífico, produzindo centenas de desenhos por ano. As suas ilustrações cobriam as páginas de livros infantis, jornais e magazines, e, entre 1901 e 1915, passaram a ser compiladas no Louis Wain Annual. Os desenhos parodiavam o comportamento humano, nas suas expressões mais triviais, satirizando modas e costumes da altura e veiculando uma mensagem moral muito vincada: “I take a sketch-book to a restaurant, or other public place, and draw the people in their different positions as cats, getting as near to their human characteristics as possible. This gives me doubly nature, and these studies I think [to be] my best humorous work.” Empenhado e preocupado com o bem-estar da sua musa felina, Wain envolveu-se com uma serie de organizações como o National Cat Club, o Governing Council of Our Dumb Friends League, a Society for the Protection of Cats, e a Anti-Vivisection Society.

Capa da reedição de 1994 de "Thunder Perfect Mind"
Apesar da popularidade, Louis Wain nunca soube capitalizar os ganhos do seu trabalho nem organizar-se financeiramente. Caía com ingenuidade nas maquinações de indivíduos mal intencionados e mostrava-se incapaz de sobreviver no meio publicitário, vendendo os seus desenhos sem, por exemplo, se preocupar com os direitos de reprodução. Era facilmente induzido por algum espertalhão a apostar numa invenção mirabolante ou qualquer outro esquema para fazer dinheiro. Em 1907 viaja até Nova Iorque, onde faz alguns desenhos para jornais, mas acaba por regressar a casa ainda mais pobre depois de uma série de fracassados investimentos imprudentes. O regresso a Inglaterra, que seria ainda pautado pela morte da mãe, pontuou o início da deterioração da sua saúde mental.

“The old willows wrecked again & again in the hold of the woods held in close confinement all round the struggle for existance where the streams were constantly taken from their course by the roots of the old trees in the woods allowing no well stream the free course through until the whole of these fine old trees had got their whole water course directed by their own roots into each others roots in their own devious ways & so each time the bad weather conditions came the dell of the old popular willows received the whole rainfall & gave the roots of the old popular trees the worst conditions they could not recover from. The result was when the bad storms swept the ground downhill the whole of the upright branches of the populars were wrecked & wrenched off as none had sufficient root hold to do any good in holding as against the winds forcing both root & trunks & branch to give way. The ultimate result was as stated the cracking down of the branches & the breaking off of the main trunk as it had no side branches to help its leaves to support the whole tree. This gave the stubble growth of enforcing the trunk low down near the ground to spray out the small side branches & to develop in the trunk the further strength to enlarge the top of the trunk to enable the heavy branch growth to develop & to give out a large number o spray branches in all directions to keep control of the wind and also to stop the wind from further to destroy the old trees in its course the winds followed the well streams & then got the clear run free of the trees until a run of heavy old tree trunks guided them out again into the ground where the rising ground destroyed them by holding them in face clear of the winds the night mist.”
Capa da reedição de "Of Ruine Or Some Blazing Starre" de 2007. O pano de fundo consiste no texto original "The Old Willows" escrito por Louis Wain

Capa de "The Seahorse Rears to Oblivion" de 2002
Continuam a subsistir algumas dúvidas acerca do diagnóstico de Louis Wain. Alguns especulam que a esquizofrenia foi precipitada por toxoplasmose, uma infecção parasítica que e contraída através dos gatos. Michael Fitzgerald considera que era mais provável que Wain sofresse de síndrome de Asperger, referindo que embora as suas pinturas adquirissem uma tendência mais abstracta com o envelhecimento, as suas competências técnicas enquanto pintor não revelaram qualquer deterioração como seria de esperar num quadro degenerativo. Para além disso, alguns elementos de agnosia visual, um elemento chave nos casos de Asperger, foram identificados na sua pintura. O diagnóstico de Asperger, esse também levanta algumas dúvidas, nomeadamente devido a uma série de referências biográficas à personalidade afável e charmosa de Wain que muito mal assentam numa personalidade supostamente autista. A causa de morte, “complicações subsequentes a um acidente vascular cerebral”, poderá facultar algumas hipóteses ainda pouco consideradas. Um acidente vascular cerebral pode ser responsável pela agnosia visual se ocorrer numa zona do cérebro responsável pela percepção visual e pela integração de elementos, num circuito dorsal entre o occipital e o parietal. O estudo da relação entre doença mental e criação artística remonta aos primórdios da psiquiatria, e sem dúvida que uma investigação aprofundada da obra e vida de Louis Wain poderá ser um importante contributo para esta área. Contudo, tal extravasa em larga medida as possibilidades deste breve texto, pelo que concluo este pequeno aparte citando um psiquiatra que afirmava que a única diferença entre as criações de artistas doentes mentais e outros saudáveis era uma “inquietante sensação de estranheza”.
Em 2000, após vários anos a coleccionar os trabalhos de Louis Wain, David Tibet escreve um artigo sobre o pintor para a fanzine de Nick Cave, “The Witness” onde se podia ler: “Arched cats, wide-eyed, electric. Whilst Wain would scribble the titles of his early pieces on the back of his paintings as a guide to the printers, by the late 1920s, he would be reciting the litany of his ecstasies and pains: ‘Bounce the Ball still, softly round it on all sides. The goal is in each Kits eye. The ball fixes each eye open: It roles to each paws love; Bounced home, where it hides.’ The doors of Catland had opened wide, and he hurried inside, to his true home.”

Durante o programa dedicado a Louis Wain foi possível escutar:
Current 93 – “A Voice From Catland” (Of Ruine Or Some Blazing Starre, 1994)
Current 93 – “When The May Rain Comes” (When The May Rain Comes, 1996)
Current 93 – “Thunder Perfect Mind” (Thunder Perfect Mind, 1992)
Current 93 – “Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight)” (Where The Long Shadows Fall (Beforetheinmostlight), 1995)
Current 93 – “Let Us Go To The Rose” (Of Ruine Or Some Blazing Starre, 1994)
Current 93 – “The Seahorse Rears To Oblivion” (The Seahorse Rears To Oblivion, 2002)
Current 93 – “The Seven Seals Are Revealed At The End Of Time As Seven Bows: The Bloodbow, The Pissbow, The Painbow, The Faminebow, The Deathbow, The Angerbow, The HoHoHoHoBow” (SixSixSix: SickSickSick, 2004)
Hiperligações:
Emissão em podcast pode ser escutada aqui
2 comments:
pois pois, isso tudo é muito bonito... mas e o podcast?
Eu aprendi sobre Louis Wain por causa do David Tibet.
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