Harvey Matusow's Jews Harp Band

Quando se fala em música psicadélica, há instrumentos que dela parecem indissociáveis, como as guitarras eléctricas, normalmente artilhadas de pedais de efeitos, wah-wah, reverberação e distorção, ou instrumentos que se tornaram muito comuns numa cultura aberta à espiritualidade e às sonoridades orientais, como, por ex., o sithar indiano. As razões dessas associações prendem-se provavelmente com as suas características tímbricas, com a sua versatilidade cromática que permite ao músico afastar-se de uma tonalidade fixa e assim libertar os ouvidos de uma cultura tonal tradicional, ressoando o novo mundo de percepções aberto pelas experiências psicotrópicas. Mas há também instrumentos, cuja estranheza e improbabilidade parecem assentar como uma luva de seis dedos no carácter vibrante e alucinatório dessas viagens da mente. Estou a falar do berimbau ou, como se diz em americano, “jews harp”, a harpa judia. A sua potência delirante será tanto maior quanto se aumentar o número de berimbaus a saltitar na atmosfera líquida e distorcida de uma trip como os cardos enovelados no vento do deserto. É, precisamente, uma banda de berimbaus – a Harvey Matusow’s Jews Harp Band – que ouvimos no programa de 27 de Novembro, e o seu estranhíssimo e obscuro LP de 1969, “War Between Fats and Thins”.

Mas se este álbum parece bizarro, ele não é senão uma amostra da excentricidade que foi a vida do seu autor. Nascido no Bronx em 1926, Harvey Matusow era já um carteirista aos dez anos de idade, mais tarde tornar-se-ia um famoso delator, trabalhando para o senador McCarthy, antes de, ao denunciar os seus próprios falsos testemunhos, na caça às bruxas, ao serviço do mccarthismo, ter sido condenado por perjúrio a cinco anos de prisão, que cumpriu na cela adjacente à de Wilhelm Reich e muito próximo do mafioso Frank Costello. Este mentiroso profissional e honesto condenado (já que foi, finalmente, preso por dizer uma verdade incómoda e não-oficial) fora, então, baptizado pelo The National Enquirer e outros jornais da época como o “Homem mais Odiado da América”. No entanto, as contradições inverosímeis deste improvável músico, cineasta experimental, comediante de stand-up, autor de programas de televisão infantis e até palhaço – “Cockyboo the Clown” – ao serviço de causas sociais, só se entendem se soubermos que, antes de delator, ele foi membro do Partido Comunista Americano, participou no revivalismo da música folk nos anos 40/50 antes de ter contribuído para destruir a vida e a carreira de um dos seus principais grupos – os Weavers -, viveu como um príncipe em Washington antes de ser preso e depois dedicou-se à arte e ao mundo editorial, sendo um dos fundadores do jornal “The East Village Other”; conheceu Timothy Leary com quem foi iniciado nas trips de LSD, antes de ele mesmo iniciar Robert Kennedy nos ácidos; privou com Andy Warhol e com os artistas de vanguarda do movimento Fluxus. Em Inglaterra, para onde decidiu exilar-se, trabalhou com Yoko Ono em filmes experimentais e organizou um dos maiores festivais de música de vanguarda de Londres – o ICES 72. Casou com Anna Lockwood (uma das suas doze esposas legítimas) e gravou este disco com ela, com Rod Parsons, Claude Lintot, Chris Yak e Leslie Kenton, enquanto digeriam o ácido lisérgico.

O álbum é composto por breves monólogos de Harvey Matusow, onde disserta filosoficamente sobre esse conflito social que divide gordos e magros, numa espécie de clarividência paranóica que dá um tom profético ao seu discurso, mas também narra eventos passados da sua história pessoal, nomeadamente, o momento após ter sido libertado da prisão e as consequências da sua escandalosa líbido. Entre os monólogos há momentos instrumentais onde se destacam os omnipresentes berimbaus, ainda que, por vezes, acompanhados por sinos índios, gongos tibetanos, guitarras de duas cordas e outros brinquedos sonoros, numa atmosfera de puro freak out. Apesar da bizarria e das consciências alteradas, o álbum tem uma surpreendente consistência e inesperada unidade.

Para saber mais sobre a incrível vida de Harvey Matusow e para poder escutar e fazer o download de todas as faixas do disco "War Between Fats and Thins", visitar o site da rádio nova-iorquina WFMU ou experimentar já nos links abaixo.

Lado A
Wet Socks
War Between Fats and Thins
Clootch Hunt
Eighteen Nuns
Velvet Tooth Paste
Carroll

Lado B
Afghan Red
Poo Children on Mountain
Scat Rat
The Officials
Motherhood Is No Accident
Margie Swiss Cheese

Amigos Químicos

"I don't know what a better world might be, but I feel that my music helps put me on a path towards one"
É com este espírito optimista e fé inabalável no poder curativo e transformador da sua música que Jan Anderzén, estudante de artes de 26 anos de idade, encara o seu projecto multiforme Kemialliset Ystävät numa entrevista concedida à revista Wire em 2004. Os Kemialliset Ystävät ou, na sua tradução para português, Amigos Químicos, existem desde 1995 com um alinhamento de músicos em constante revolução, e são possivelmente uma das faces mais visíveis de um movimento artístico e musical finlandês que engloba grupos como Avarus (do qual Anderzén também faz parte), The Anaksimandros, ou Kuupuu, e editoras como a Fonal, a Lal Lal Lal, ou a Pohjoisten Kukkaisten Äänet.
A estética deste movimento é difícil de definir e, muito embora alguns críticos já o tenham tentado aproximar e enraizar no Free Folk americano ou New Weird America, a verdade é que ambos nasceram sensivelmente pela mesma altura, razão pela qual não se pode afirmar qualquer tipo de precedência de um em relação ao outro. A catalogação num género musical da cena finlandesa tem sido um outro aspecto que faz crescer cabelos brancos nos crânios dos críticos já que o espectro de influências destes grupos no geral, e de Kemialliset Ystävät em particular é extenso e passa pelo Krautrock, Hip-Hop, Noise, Free Jazz e, claro está, pelo Psicadelismo.
Curioso será notar que embora este conglomerado de músicos contemporâneos pareça ter surgido subitamente, vindo do nada como um Big Bang musical de epicentro nordestino, a verdade é que estes se encontram posicionados num continuum desenvolvimental cujas origens remontam ao underground finlandês dos anos 60, onde pontificavam figuras como Erkki Kurenniemi e os seus experimentos electroacústicos, Pekka Airaksinen e os The Sperm, ou mesmo MA Numminen, autor de um dos primeiros discos DIY em 1961.

Podemos situar os Kemialliset Ystävät precisamente nesta esteira de experimentalismo, autonomia em relação a forças externas como as editoras, e exploração dos recônditos da mente humana através do som, da pintura e da performance. Com efeito, praticamente todos os álbuns editados por Anderzén são um convite à projecção, como se de lâminas de um teste de Rorschach se tratassem. As capas dos discos traduzem o gosto de Anderzén pela arte folclórica, as pinturas pré-históricas, a fotografia, as mandalas e as colagens, e por vezes não chegam mesmo a fazer qualquer referência ao nome do artista ou do registo discográfico. Quando existem, os livrinhos que acompanham os discos seguem o mesmo trilho, já que os nomes das faixas e informações adicionais encontram-se em finlandês, pelo que apenas podemos imaginar ou sonhar o que raio estará ali escrito. Por último o conteúdo sonoro deste aparato projectivo. Das guitarras e sintetizadores aos instrumentos tradicionais e de fabrico caseiro, passando pelos tachos, panelas e brinquedos, tudo parece ser válido para estes amigos químicos. O trabalho de estúdio assume um lugar de destaque, já que o tratamento que Anderzén imprime às gravações torna muitas vezes imperceptível a fonte original do som. O processo de composição assemelha-se assim ao laborioso trabalho de costura de uma manta de retalhos e revela de forma inequívoca o sincretismo exponencialmente idiossincrático de Anderzén.


No dia 20 de Novembro o Laboratorio Chimico convidou o auditório a mergulhar no microcosmos sonoro de Kemialliset Ystävät.

Todas as imagens que aqui reproduzimos foram retiradas daqui

Entrevista com Jan Anderzén, aqui

Exploding Plastic Inevitable


"Do You want to dance and blow Your mind with the Exploding Plastic Inevitable?!!", dizia um anúncio publicado no The Village Voice, no início de Abril de 1966. Prometia ainda "música ao vivo, dança, ultra-sons, visões, jogos de luzes, comida, celebridades e filmes. TUDO NO MESMO LUGAR AO MESMO TEMPO". Este evento multimédia iria acontecer no Polsky Dom Narodny, um salão, na East Village em Nova York, destinado normalmente à organização de casamentos polacos e outras festas da comunidade imigrante. Andy Warhol, também ele filho de imigrantes de leste, alugara o espaço, durante esse mês de Abril, para aí inaugurar um espectáculo que incluía a projecção simultânea de vários filmes seus - Vinyl, Eat, Sleep, Kiss e Harlot - slides com padrões abstractos, efeitos de luzes estroboscópicos, a famosa "whip dance" de Gerard Malanga e o concerto de uma jovem e ainda desconhecida banda, apadrinhada pelo rei da Pop Art, os The Velvet Underground & Nico. Esta performance intermédia, que recebeu o nome sensacionalista "Exploding Plastic Inevitable" [depois de ter tido o nome Up-Tight e Erupting Plastic Inevitable], não era a única do género naquela época, mas como afirmou o cineasta experimental Jonas Mekas, terá sido a que de forma "mais violenta, ruidosa e dinâmica" explorava essa nova arte performativa e ambiental.

Desde os inícios da década de 50 que, na costa oeste, se podia assistir a concertos de Jazz ou a sessões de poesia "beat", onde eram projectadas luzes de várias cores, por vezes filtradas através de slides com padrões geométricos ou mesmo, a partir de dado momento, de lâminas com tintas a óleo que transformavam o espaço de modo mais dinâmico. Os espectáculos de luzes tornaram-se cada vez mais frequentes, sobretudo durante os concertos dessa nova música psicadélica que se expandia na América de meados dos anos 60, onde elas contribuíam para aproximar a experiência estética desses eventos musicais dos estados alterados da percepção, ao bombardear os sentidos com explosões de formas, sons e cores. Bill Ham and The Light Sound Dimension, Glenn McKay's Headlights, the Brotherhood of Light ou os mais profissionais Joshua Light Show eram presenças essenciais em qualquer evento desta nova cultura intoxicante e intoxicada que alastrava da costa oeste até à costa leste. A partir de 1965, clubes nocturnos em Nova York, como o Cheetah ou o Electric Circus, proporcionavam, não só este tipo de entretenimento, como lhe acrescentavam uma dimensão mais cerebral e artística com a projecção de imagens, excertos de filmes, circuitos fechados de video ou mesmo actores e bailarinos em happenings que lhes davam um outro tipo de sofisticação.


Havia, porém, algo de diferente nas noites orquestradas por Andy Warhol e pelos seres alienígenas da Factory. O sentido de liberdade e comunhão com o todo que animava os eventos hippies da Califórnia era substituído por uma cínica distância e um narcisismo brutal que separava os que ali se exibiam. À inocência do "flower power" opunha-se a decadência "dandy" das "Flores do Mal" e à esperança numa revolução redentora respondia um angustiado niilismo. Tudo isto se cruzava na experiência ensurdecedora de uns Velvet Underground a tocarem de costas voltadas para o público, com a voz andrógina da sua überchanteuse, Nico, a cantar "I'll be Your mirror" ou "Femme Fatale" e o bailado sado-masoquista de Gerard Malanga e Mary Woronov, iluminado pelas luzes estroboscópicas e os padrões Op Art que já não reproduziam tanto os efeitos do LSD como o egotismo insuflado pela heroína e pelas anfetaminas. Em plena revolução hippie, Exploding Plastic Inevitable anunciava já o desespero do punk.



[O filme de Ronald Nameth sobre o Exploding Plastic Inevitable, 1967. 2ª parte, aqui.]

Sobre Andy Warhol e a Factory nos anos 60, com muita informação e documentos de arquivo, o site de Steven Watson, autor de Factory Made: Warhol and the Sixties.

Sobre the Exploding Plastic Inevitable, o fac-símile do nº 3 da revista Aspen, publicada em Dezembro de 1966.

Ver ainda o vídeo de Jonas Mekas sobre Andy Warhol com imagens das primeiras performances de Velvet Underground e do EPI.

Two Hundred Cosmo Logistix of Universe Zero, or Origins of a Planet called Gong

A long & ago it was when the great God Cell decided to be divided
& so it was that in voice of terrible beauty
too sweet for our meat
Great God Cell sang seven great sounds.
Seven great sounds sang Great God Cell
and as each great Sound
sang out
yet another Heaven was born
until there were seven seriously supersonic
Heavens.

Thenceforth,
within each of the Seven Heavens of serious sound
a further dividing took place.
Each Heaven spontaneously discovered itself to be composed of
SEVEN OCTAVES
each containing seven luminous tones.
Immediately then began a process of unfoldment.
From the gigantic central eye of Great God Cell
flew a brilliant and fiery star
which, as it fell through space, looked back from whence it came
and for the first time
saw itself.

At the very instant that it saw itself,
it became it's own mirror image
and thus was created
GREAT GOD SELF.
"Ja Am I Am! cried Great God Self
"Thou Art In Thought Indeed" replied the Great God Cell
and disappeared.
Great God Self, being all alone, had his first thought
and did the right thing.
He observed and wrote down the first natural law of the Seven Heavens

ONE: WHEN I AM COMES IN, THOU ART GOES OUT.
But although Thou Art seemed outa there, in fact
t'was merely invisible.

Thou art there, Thou Art, art thou not?
Well anyway, then Great God Self fell into the
Seven Heavens like a large wet tear drop,
and splattered into two thousand four hundred and
one silly selves or s'elves.
(7x7=49. 49x7=343. 343x7=2401. ah yes mothermatics)
These beings were then distributed equally
amongst the seven heavens and their octaves
were they quickly adapted and populated, using
the ladder of octaves as their
evolutionary field
yep

this is the end of yor first serve
god nude to thighs elf
ding


texto retirado de planet gong

Radio Gnome Trilogy

Neste programa o destaque foi votado à trilogia “Radio Gnome Invisible” dos Gong. Este manifesto mitológico reporta-se aos terceiro, quarto e quinto álbuns do grupo, respectivamente, “Flying Teapot” (1973), “Angel's Egg” (1973) e “You” (1974), se não contarmos com os créditos da banda-sonora de “Continental Circus” (realizado por Jerome Laperrousaz, em 1971) e com o split com Dashiell Hedayat, “Obsolete”, também de 1971.

Tudo começou numa noite de lua cheia na Páscoa de 1966, quando Daevid Allen, o mentor dos Gong e na altura membro dos Soft Machine, teve uma visão do que viria a ser a sua existência e da sua banda. Tal visão materializou-se definitivamente na criação de “Radio Gnome”, do qual aqui deixamos um resumo que se aproxima das palavras proferidas no éter da RUC entre as 8 e as 9 da noite da passada quinta-feira.


Quando um fazendeiro Egiptologista de nome Mista T Being comprou um brinco mágico a um vendedor e coleccionador de bules antigos e de chás que se encontrava na rua, de seu nome Fred The Fish, descolava Flying Teapot. Esse brinco tinha a capacidade de receber mensagens vindas do Planeta Gong, enviadas através de uma rádio, a "Radio Gnome", e dotava o seu portador da possibilidade de comunicar telepaticamente com os habitantes daquele planeta. Being e Fish partiram então para os Himalaias onde encontraram o guru (Great Beer Yogi) Banana Ananda, que se entretém na sua gruta a entoar hipnoticamente Banana Nirvana Mañana e que bebe enormes quantidades de cerveja.
Entretanto, Zero , o personagem-central desta história, vê o seu pacato dia-a-dia brindado com uma visão na agitada Charing Cross Road, em Londres. Como consequência, Zero parte numa busca incessante dos seus heróis, iniciando uma veneração ao duende Cock Pot, membro dos Duendes Ganzados (Pot Head Pixies), os habitantes do Planeta Gong, simpáticas criaturas verdes com hélices na cabeça e que se movem em bules voadores. Durante a sua demanda Zero cruza-se com um gato e oferece-lhe as suas fish and chips e o gato retribui o gesto oferecendo a Zero uma poção mágica.

Gong – “Radio Gnome” (Flying Teapot)
Gong – “Flying Teapot” (Flying Teapot)
Gong – “Witch's Song / I am Your Pussy” (Flying Teapot)



Zero adormece sob os efeitos soporíferos da mistela e encontra-se subitamente a planar no espaço sideral. Depois de um breve encontro com um astronauta de seu nome Captain Capricorn, Zero localiza finalmente o Planeta Gong, onde passa uns momentos agradáveis na companhia de uma prostituta que o inicia aos mistérios da deusa da lua Selene. A viagem quimicamente induzida prossegue e os Pot Head Pixies acabam por lhe explicar de que forma os seus bules de chá desafiam as leis da gravidade e cruzam os céus. Esta incursão aos mistérios de Gong culmina com uma visita ao One Invisible Temple, onde Zero vislumbra o Angel’s Egg, uma corporização dos 32 Octave Doctors, descendentes do Great God Cell. Um grande plano é então revelado a Zero. Vai realizar-se na Terra o Great Melting Fest of Freeks, um concerto orgiástico à escala planetária, e Zero está encarregue da sua organização, muito embora este episódio seja descrito em maior pormenor no terceiro e último capítulo.

Gong – “Flute Salad (Malherbe) / Oily Way” (Angel’s Egg)
Gong – “Outer Temple” (Angel’s Egg)
Gong – “Inner Temple” (Angel’s Egg)
Gong – “Percolations (Moerlin)” (Angel’s Egg)
Gong – “Love Is How You Make It” (Angel’s Egg)
Gong – "I Never Glid Before" (Angel’s Egg)



You personifica o regresso a si mesmo de Zero, vindo da sua trip. Procurando o melhor caminho de regresso pergunta a Hiram, o Construtor Magistral (Master Builder), como estruturar as visões que tivera de modo a poder construir o seu próprio Templo Invisível. A resposta é dada, devendo Zero organizar-se para aceder ao Great Melting Feast of Freaks, que terá lugar na Ilha de Toda-a-Parte (Island of Everywere), em Bali. Durante este importante evento o Doutor Interruptor (Switch Doctor) (membro dos Octave Doctors, gurus da sabedoria e protectores do Planeta Gong), magicamente, faz com que todos os presentes passem a ter três olhos, excepto Zero, já que este se deleitava indulgentemente com os prazeres terrenos. Zero perde desta forma a Experiência Reveladora do Terceiro Olho e vê-se forçado a prosseguir a sua existência terrena mortal, convergindo lentamente para o Ovo dos Anjos (Angel's Egg), uma impenetrável carapaça protectora onde os Duendes Ganzados nascem e reciclam a sua existência quando esta tende para o seu fim, alcançando a eternidade.

Gong – “Thoughts for Naught” (You)
Gong – “A P.H.P.’s Advice” (You)
Gong – “Magick Mother Invocation” (You)
Gong – “Master Builder (You)

A trilogia que destacámos foi bem mais tarde continuada com mais dois episódios: Shapeshifter (1992) e Zero to Infinity (2000), que complementam a história conhecida com a existência virtual de Zero, que gozaria então de uma vida etérea, sem corpo, de seu nome Android Shperoid Zeroid.

The Trip


Roger Corman – “The Trip” (1967)

As palavras que acabámos de ouvir anunciavam, em 1967, não o primeiro mas um dos mais famosos filmes sobre LSD – “The Trip” de Roger Corman, numa categoria de produções cinematográficas de baixo orçamento que explorava a temática das drogas e das suas manifestações no seio da sociedade americana. Os filmes da “drugsploitation”, cujo mais antigo registo arqueológico se poderá talvez encontrar num fotograma pertencente a um filme de Thomas Edison de 1894 - “Opium Joint”, retratavam situações de uso de estupefacientes e os seus efeitos, muitas vezes para denunciar os seus malefícios e dissuadir potenciais consumidores. Neste aspecto, o filme de Roger Corman é ambíguo, tendo sido mesmo acusado de promover a cultura psicadélica com a sua atitude “demasiado simpática” em relação a esses hippies que povoavam “The Trip”, desmentindo assim o carácter preventivo do anúncio inicial, o qual, muito provavelmente, correspondeu a uma exigência da American International Pictures. Na verdade, a minúcia e “realismo” na descrição dessa experiência com LSD – a qual é, sem dúvida, o motivo principal e exclusivo deste filme – pode muito bem dever-se ao facto de, tal como o argumentista – nada mais nada menos que um jovem e ainda desconhecido Jack Nicholson (sim, esse!) – e os restantes actores envolvidos no filme – Peter Fonda, Dennis Hopper e Bruce Dern -, o realizador ter experimentado a droga e a viagem que ela induz, como se pode ouvir pelas palavras do próprio neste excerto do “making-off”.


Como o próprio nome indica, o filme descreve a viagem alucinada de Paul Groves - um publicitário a viver uma fase crítica da sua existência, no meio de um divórcio contra a sua mulher, uma adúltera representada por Susan Strasberg -, que decide, com o auxílio do seu amigo bem intencionado John (Bruce Dern), fazer uma primeira experiência de auto-descoberta, induzida pela ingestão do ácido lisérgico. Este havia sido fornecido por Max, um dealer simpático, desempenhado por Dennis Hopper, que albergava em sua casa artistas, músicos e jovens raparigas adeptas do amor livre. Numa cabana de paredes pintadas com múltiplas cores e formas ondulantes, John ajuda Paul a dar os primeiros passos nas suas aventuras psicotrópicas, em que experimenta todo o tipo de visões, sexo desenfreado, perseguições com cavaleiros negros, a sua própria morte numa masmorra gótica e até mesmo um julgamento-circo, num carrossel presidido por Dennis Hopper, onde se julga o seu modo de vida consumista e o questionam sobre os seus dilemas existenciais.

Num momento de desatenção de John, Paul foge da cabana por julgar ter assassinado o seu amigo e a viagem acelera para um ritmo frenético e paranóico que o faz visitar uma casa de campo, onde se instala para ver o noticiário sobre o Vietnam, mas acaba por ser surpreendido pela companhia de uma menina e, logo depois, pelos seus pais, o que gera suspeitas de pedofilia e o faz mais uma vez continuar a sua fuga ao real. Chega à cidade, e encanta-se com o tambor das máquinas de lavar numa lavandaria, onde tenta estabelecer uma comunhão espiritual com uma utente, mas a sua tentativa frustrante e alienada rapidamente degenera numa repetida fuga para a euforia da vida nocturna californiana, ora numa danceteria decorada ao estilo da época, ora de regresso ao albergue hippie de Max, onde finalmente reconhece uma rapariga simpatizante das experiências ácidas, com quem se entrega numa noite escaldante e sobretudo alucinada de paixão dietilamídica. O filme tenta reproduzir visualmente, com os modestos efeitos especiais disponíveis, mas com engenho e imaginação, os efeitos da trip, acompanhando a sua evolução não-linear e desfragmentada, com um argumento experimental de escrita rápida e sincopada, do mesmo Jack Nicholson que, dois anos depois, haveria de protagonizar, ao lado de Dennis Hopper e Peter Fonda, “Easy Rider”, mas também “Voando sobre um Ninho de Cucos”, baseado no romance de Ken Kesey, outro dos principais protagonistas da contra-cultura psicadélica.

A banda sonora foi atribuída enigmaticamente a uma American Music band: o grupo The Electric Flag que aparece em cenas do filme.

O filme completo no Youtube: The Trip parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6, parte 7, parte 8 e fim.

Funkadelismo

O Laboratório Chímico de quinta-feira passada foi dedicado a uma revisão dos três primeiros discos de Funkadelic.

Funkadelic - "Mommy, What's a Funkadelic?" (Funkadelic)
Funkadelic - "What is Soul" (Funkadelic)
Funkadelic - "Free Your Mind and Your Ass Will Follow" (Free Your Mind and Your Ass Will Follow)
Funkadelic - "Eulogy and Light" (Free Your Mind and Your Ass Will Follow)
Funkadelic - "Maggot Brain" (Maggot Brain)
Funkadelic - "Wars of Armageddon" (Maggot Brain)


Houve ainda espaço para a crónica "O Pulsar Ciclotímico do Amola Tesouras" dedicada a "In C" de Terry Riley.

Terry Riley - "In C" (In C)
L'Infonie - "In C" (Vol. 33/Mantra)
Acid Mothers Temple & The Melting Paraiso U.F.O - "In C" (In C)

"Funkadelic came into being during 1968 in response to group mastermind George Clinton's dissatisfaction with his current group's recording contract and their increased LSD intake. In a brilliant move of outwitting record company lawyers, Clinton rechristened the musicians of his vocal group (the Parliaments) as Funkadelic. With a new name and a new philosophy, they were able to explore the musical possibilities of the ego-less experience"

Wilkinson, S. (1997). Funkadelic, Psychedelic Soul Brothers 1968-1971. Galactic Zoo Dossier, 3.

In C

Foi em Novembro de 1964, no San Francisco Tape Music Center, que um concerto de Terry Riley fez história, com a estreia mundial da sua obra, despretensiosamente denominada “In C” (em dó). Cerca de 150 pessoas sentadas em cadeiras desdobráveis num pequeno auditório esperavam já por qualquer coisa de excepcional, devido a boatos que pairavam no ar, mas não saberiam que esse concerto iria marcar o início daquilo a que alguns chamariam música minimal repetitiva. As luzes da sala baixaram e dois projectores iluminaram os 14 músicos que se preparavam para começar com feixes de luzes entrelaçadas em padrões coloridos. Uma nota dó começou então a ser martelada metronomicamente no piano, para marcar, do princípio até ao seu final, o pulso de uma obra animada pela repetição de 53 fórmulas melódicas de uma parcimoniosa partitura que enche apenas uma página. Segundo as instruções do compositor, cada instrumentista deveria repetir essas fórmulas durante um intervalo de tempo compreendido entre 45 e 90 minutos, sendo o momento de passagem de uma frase melódica à frase seguinte deixado ao critério de cada executante, o que produzia transformações sucessivas e imperceptíveis que criavam a sensação de uma paradoxal mobilidade, ao mesmo tempo, instável e estática. A repetição constante e a monotonia, no sentido forte de uma única base tonal, à volta da qual se geravam pequenas órbitas harmónicas circulares e concêntricas produziam um transe hipnótico e um efeito suspensivo do tempo que alargava a consciência de cada ouvinte. Devido a essa fórmula alquímica, descoberta por Terry Riley numa viagem de autocarro toxicamente alterada feita no mês anterior, parecia que era possível resolver-se o dilema metafísico que opunha o uno ao múltiplo, criando a sensação em cada executante e em cada ouvinte de pertencer a um só todo.

Talvez por isso, tenha havido uma tão boa aceitação de uma obra de música contemporânea de vanguarda num público que, em meados dos anos 60 em São Francisco, se começava a familiarizar com as experiências induzidas por drogas psicadélicas e que viria pouco tempo depois a vibrar com os frequentes freakouts do rock e do folk ácidos. Ou talvez fosse a aparente simplicidade conceptual da obra e a eficácia e tangibilidade da sua execução que permitiu uma adesão pela cultura pop, sobretudo a partir da sua gravação e edição em 1968, pela CBS, e que contaminou pelos ouvidos uma série de outros grupos que inúmeras vezes até hoje se têm juntado para a reinterpretar. É verdade que a sua relativa abertura formal e a irrepetitibilidade congénita de cada interpretação convidam a novas execuções.

Infelizmente não parece haver registos dessa primeira performance de “In C” de 1964, quando se encontrava entre os músicos intérpretes nomes tão importantes como Pauline Oliveros, Steve Reich ou Morton Subotnick, pelo que esta gravação de 1968 se tornou como que a primeira a ser conhecida pela maior parte dos que não puderam estar na sua estreia. Desta gravação feita em Nova Yorque também constam alguns nomes que se tornariam conhecidos, como por exemplo, o trompetista Jon Hassel que também colaborara com La Monte Young e que estudara com Stockhausen. Em 1970, mais exactamente a 33 de Setembro de 1970, foi feita, em Montreal, uma outra interpretação muito heterodoxa de “In C”, que recebe o título de “Mantra”, pelo grupo poético-psicadélico de Walter Boudreau, L’Infonie, num delírio psicotrópico que lhe acrescenta uma secção rítmica típica do rock, mas que tenta, apesar de tudo, captar o pulsar frenético e em constante mudança comum a toda a energia vital a que a obra original pretendia ser um hino. Entre outras interpretações, podemos ainda referir uma outra, mais recente (2002), pelo grupo japonês Acid Mothers Temple & Melting Paraiso U.F.O., que eleva a escala do delírio alucinatório daquele gamelão californiano original à altura de um tsunami heraclitiano sublime.



A partitura e as instruções dadas por Terry Riley aos executantes, aqui.

Para saber mais sobre:
Terry Riley
L'Infonie
Acid Mothers Temple