In C

Foi em Novembro de 1964, no San Francisco Tape Music Center, que um concerto de Terry Riley fez história, com a estreia mundial da sua obra, despretensiosamente denominada “In C” (em dó). Cerca de 150 pessoas sentadas em cadeiras desdobráveis num pequeno auditório esperavam já por qualquer coisa de excepcional, devido a boatos que pairavam no ar, mas não saberiam que esse concerto iria marcar o início daquilo a que alguns chamariam música minimal repetitiva. As luzes da sala baixaram e dois projectores iluminaram os 14 músicos que se preparavam para começar com feixes de luzes entrelaçadas em padrões coloridos. Uma nota dó começou então a ser martelada metronomicamente no piano, para marcar, do princípio até ao seu final, o pulso de uma obra animada pela repetição de 53 fórmulas melódicas de uma parcimoniosa partitura que enche apenas uma página. Segundo as instruções do compositor, cada instrumentista deveria repetir essas fórmulas durante um intervalo de tempo compreendido entre 45 e 90 minutos, sendo o momento de passagem de uma frase melódica à frase seguinte deixado ao critério de cada executante, o que produzia transformações sucessivas e imperceptíveis que criavam a sensação de uma paradoxal mobilidade, ao mesmo tempo, instável e estática. A repetição constante e a monotonia, no sentido forte de uma única base tonal, à volta da qual se geravam pequenas órbitas harmónicas circulares e concêntricas produziam um transe hipnótico e um efeito suspensivo do tempo que alargava a consciência de cada ouvinte. Devido a essa fórmula alquímica, descoberta por Terry Riley numa viagem de autocarro toxicamente alterada feita no mês anterior, parecia que era possível resolver-se o dilema metafísico que opunha o uno ao múltiplo, criando a sensação em cada executante e em cada ouvinte de pertencer a um só todo.

Talvez por isso, tenha havido uma tão boa aceitação de uma obra de música contemporânea de vanguarda num público que, em meados dos anos 60 em São Francisco, se começava a familiarizar com as experiências induzidas por drogas psicadélicas e que viria pouco tempo depois a vibrar com os frequentes freakouts do rock e do folk ácidos. Ou talvez fosse a aparente simplicidade conceptual da obra e a eficácia e tangibilidade da sua execução que permitiu uma adesão pela cultura pop, sobretudo a partir da sua gravação e edição em 1968, pela CBS, e que contaminou pelos ouvidos uma série de outros grupos que inúmeras vezes até hoje se têm juntado para a reinterpretar. É verdade que a sua relativa abertura formal e a irrepetitibilidade congénita de cada interpretação convidam a novas execuções.

Infelizmente não parece haver registos dessa primeira performance de “In C” de 1964, quando se encontrava entre os músicos intérpretes nomes tão importantes como Pauline Oliveros, Steve Reich ou Morton Subotnick, pelo que esta gravação de 1968 se tornou como que a primeira a ser conhecida pela maior parte dos que não puderam estar na sua estreia. Desta gravação feita em Nova Yorque também constam alguns nomes que se tornariam conhecidos, como por exemplo, o trompetista Jon Hassel que também colaborara com La Monte Young e que estudara com Stockhausen. Em 1970, mais exactamente a 33 de Setembro de 1970, foi feita, em Montreal, uma outra interpretação muito heterodoxa de “In C”, que recebe o título de “Mantra”, pelo grupo poético-psicadélico de Walter Boudreau, L’Infonie, num delírio psicotrópico que lhe acrescenta uma secção rítmica típica do rock, mas que tenta, apesar de tudo, captar o pulsar frenético e em constante mudança comum a toda a energia vital a que a obra original pretendia ser um hino. Entre outras interpretações, podemos ainda referir uma outra, mais recente (2002), pelo grupo japonês Acid Mothers Temple & Melting Paraiso U.F.O., que eleva a escala do delírio alucinatório daquele gamelão californiano original à altura de um tsunami heraclitiano sublime.



A partitura e as instruções dadas por Terry Riley aos executantes, aqui.

Para saber mais sobre:
Terry Riley
L'Infonie
Acid Mothers Temple

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