No início desta crónica emitida no dia 11 de Março de 2010, ouviram-se as palavras ditas por Henri Michaux numa espécie de Preâmbulo ao filme “Images d’un Monde Visionnaire” de 1964, um filme educacional (para não dizer científico) sobre os efeitos alucinogénicos induzidos pela ingestão da mescalina e do haxixe num paciente, realizado por Henri Michaux e Eric Duvivier e produzido pelo laboratório farmacêutico suíço Sandoz – responsável pela síntese do LSD em 1938. O filme consiste numa sequência de imagens de vários tipos, manipuladas por diferentes dispositivos técnicos disponíveis na época, com vista a produzir efeitos visuais de alucinação, semelhantes aos que se vêem desfilar na mente de um sujeito submetido à acção daquelas substâncias psicotrópicas. Acompanhado pela música de Gilbert Amy e pela incidental intervenção da voz de Henri Michaux, o filme está dividido em duas partes, relativas respectivamente à influência da mescalina e do haxixe, acentuando as diferenças do tipo de visões induzidas por uma e por outra, apresentando as primeiras um carácter mais inefável e distorcido da percepção tradicional – alteração das formas, cores e dimensões, desmultiplicação da identidade dos objectos -; e as segundas correspondendo a uma sequência onírica de imagens sem aparente ligação lógica. Nesta segunda parte, o filme assemelha-se bastante a uma filme surrealista, estética a que Michaux não foi de modo nenhum alheio.
O escritor e pintor de origem belga havia na sua juventude começado a estudar medicina e sempre se interessara por escritos psiquiátricos relativos a experiências com doentes mentais. Sempre muito propenso a viajar e escrever diários de viagem, resolveu aos 55 anos empreender outro tipo de viagens e registar em texto e em desenho as suas experiências psicadélicas com a mescalina, o haxixe, a psilocibina e mesmo com o LSD. Estas experiências eram muito informadas pela leitura de tudo o que tinha conseguido arranjar sobre o assunto: para além dos estudos científicos, a leitura de Thomas de Quincey, Aldous Huxley ou Antonin Artaud determinou uma perspectiva poético-filosófica e médico-experimental das sessões de psicotrópicos, algumas acompanhadas por uma psiquiatra especialista na matéria (Dr. Ajuriaguerra) e por um amigo pintor (Bernard Saby). Dessas experiências com a mescalina, arrastadas por um período de dez anos, resultaram algumas das suas obras mais citadas Misérable Miracle (1956), L’infini Turbulent (1957), Connaissance par les Gouffres (1961) e Les Grandes Épreuves de l’Ésprit (1966). No prefácio ao primeiro livro sobre os efeitos da mescalina, Michaux descreve deste modo o acto de escrever sob o efeito da droga: “Lançadas vigorosamente aos solavancos, na e através da página, as frases interrompidas, com sílabas voadoras, desfiadas, arrancadas, mergulhavam, descaíam, faleciam, e os seus restos renasciam, ressaltavam, fugiam e voltavam a explodir. As suas letras acabavam em fumaça ou desapareciam aos ziguezagues. As seguintes, igualmente descontínuas, continuavam de igual modo a sua narrativa atribulada, como pássaros em pleno drama aos quais tesouras cortariam as asas em pleno voo. (…) Como dizer isto? Ser-me-ia necessária uma maneira acidentada que não possuo, feita de surpresas, interrupções sem pés nem cabeça, clichés de um instante, ressaltos e incidentes, um estilo instável, serpenteante e infantil…” Mas a dificuldade da tradução linguística da experiência ressalta ainda melhor, quando diz no próprio corpo do texto “… encontramo-nos, para o dizer definitivamente, numa situação tal que cinquenta onomatopeias diferentes, simultâneas, contraditórias e a cada meio-segundo modificadas seriam a sua mais exacta expressão.” Em L’infini Turbulent, por exemplo, a quase inefabilidade sacro-religiosa dali resultante, evocando um sentimento de plenitude e de unidade, proporcionou a Michaux uma tradução poética muito próxima dos escritos dos místicos: “Partilha ao infinito./ Tudo interconectado; tudo e todos modificadores, conjuntamente. /[…] Consciência unificadora, de uma tal amplitude que faz aparecer o mundo, dito real, como uma alteração do mundo unificado /[…] Hino aberto a tudo./ Hino eu próprio. / Hino./ Vastidão havia encontrado verbo.”
Mas o melhor será mesmo ler os poemas e ver os desenhos que Henri Michaux deixou nos seus livros. E enquanto isso não acontece, ver o filme do qual escutamos a banda sonora, no site da Ubuweb: http://www.ubu.com/film/michaux_images.html.
O escritor e pintor de origem belga havia na sua juventude começado a estudar medicina e sempre se interessara por escritos psiquiátricos relativos a experiências com doentes mentais. Sempre muito propenso a viajar e escrever diários de viagem, resolveu aos 55 anos empreender outro tipo de viagens e registar em texto e em desenho as suas experiências psicadélicas com a mescalina, o haxixe, a psilocibina e mesmo com o LSD. Estas experiências eram muito informadas pela leitura de tudo o que tinha conseguido arranjar sobre o assunto: para além dos estudos científicos, a leitura de Thomas de Quincey, Aldous Huxley ou Antonin Artaud determinou uma perspectiva poético-filosófica e médico-experimental das sessões de psicotrópicos, algumas acompanhadas por uma psiquiatra especialista na matéria (Dr. Ajuriaguerra) e por um amigo pintor (Bernard Saby). Dessas experiências com a mescalina, arrastadas por um período de dez anos, resultaram algumas das suas obras mais citadas Misérable Miracle (1956), L’infini Turbulent (1957), Connaissance par les Gouffres (1961) e Les Grandes Épreuves de l’Ésprit (1966). No prefácio ao primeiro livro sobre os efeitos da mescalina, Michaux descreve deste modo o acto de escrever sob o efeito da droga: “Lançadas vigorosamente aos solavancos, na e através da página, as frases interrompidas, com sílabas voadoras, desfiadas, arrancadas, mergulhavam, descaíam, faleciam, e os seus restos renasciam, ressaltavam, fugiam e voltavam a explodir. As suas letras acabavam em fumaça ou desapareciam aos ziguezagues. As seguintes, igualmente descontínuas, continuavam de igual modo a sua narrativa atribulada, como pássaros em pleno drama aos quais tesouras cortariam as asas em pleno voo. (…) Como dizer isto? Ser-me-ia necessária uma maneira acidentada que não possuo, feita de surpresas, interrupções sem pés nem cabeça, clichés de um instante, ressaltos e incidentes, um estilo instável, serpenteante e infantil…” Mas a dificuldade da tradução linguística da experiência ressalta ainda melhor, quando diz no próprio corpo do texto “… encontramo-nos, para o dizer definitivamente, numa situação tal que cinquenta onomatopeias diferentes, simultâneas, contraditórias e a cada meio-segundo modificadas seriam a sua mais exacta expressão.” Em L’infini Turbulent, por exemplo, a quase inefabilidade sacro-religiosa dali resultante, evocando um sentimento de plenitude e de unidade, proporcionou a Michaux uma tradução poética muito próxima dos escritos dos místicos: “Partilha ao infinito./ Tudo interconectado; tudo e todos modificadores, conjuntamente. /[…] Consciência unificadora, de uma tal amplitude que faz aparecer o mundo, dito real, como uma alteração do mundo unificado /[…] Hino aberto a tudo./ Hino eu próprio. / Hino./ Vastidão havia encontrado verbo.”
Mas o melhor será mesmo ler os poemas e ver os desenhos que Henri Michaux deixou nos seus livros. E enquanto isso não acontece, ver o filme do qual escutamos a banda sonora, no site da Ubuweb: http://www.ubu.com/film/michaux_images.html.
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