“Aproximar outro universo, outro tempo, outro mundo. Receber as imagens de uma utopia estranha que, incessantemente, oscila entre sonho e realidade.” Assim é descrita a experiência da leitura de “L’Amérique” de Jean Baudrillard, na contra-capa da sua edição francesa. E, com efeito, ler este livro é como viajar, através de uma estética do fascínio, da sideração e da alucinação conceptual do semiólogo francês, por uma paisagem heterotópica e hipnagógica da América, simulada, como num mapa inventado por Borges à escala 1:1, pela semiose auto-imune de Baudrillard, onde o referente desaparece por detrás da aglutinação entre o significado e o significante.
É o próprio que se refere à sua experiência deste modo: “A América não é nem um sonho, nem uma realidade, é uma hiperrealidade. É uma hiperrealidade porque é uma utopia que desde o início foi assumida como realizada. Tudo aí é real, pragmático, e tudo nos torna sonhadores. Talvez a verdade da América apenas possa aparecer a um europeu, já que apenas ele encontra aí o simulacro perfeito, o da imanência e da transcrição material de todos os valores. Os americanos, eles, não têm nenhum sentido da simulação. Eles são a sua configuração perfeita, mas não têm a linguagem desta, na medida em que são eles o seu modelo.”
O livro editado em 1986, depois de uma viagem e estadia nos Estados Unidos, parece o registo escrito de um delírio hiper-lúcido, provocado pela sobre-estimulação sensorial e intelectual do sociólogo, exposto a uma visão estranhamente familiar de um país cuja memória antecede e antecipa a sua experiência possível, ao ponto de fazer com que a realidade pareça imitar a sua representação. Contemporâneo do crescimento exponencial da digitalização e mediatização do real, o país surge-lhe, então, assim: “A América é um gigantesco holograma, no sentido em que a informação total está contida em cada um dos seus elementos. Tome-se a mais pequena estação de serviço no deserto, ou uma qualquer rua de uma cidade do Middle West, um parque de estacionamento, uma casa californiana, um Burger King ou um Studebaker, e obtém-se toda a América, a sul, a norte, a este como a oeste. Holográfica no sentido da luz coerente do laser, homogeneidade dos elementos simples conduzidos pelos mesmos feixes. Do ponto de vista visual e também plástico: temos a impressão de que as coisas estão feitas de uma matéria irreal, que elas giram e se deslocam no vazio como por um efeito luminoso especial, uma película que atravessamos sem nos apercebermos.
Com certeza o deserto, mas Las Vegas, a publicidade, e também a actividade das pessoas, public relations, electrónica da vida quotidiana, tudo se recorta com a plasticidade e a simplicidade de um sinal luminoso. O holograma está próximo do fantasma, é um sonho tridimensional, e podemos nele entrar como num sonho. Tudo se prende com a existência do raio luminoso que transporta as coisas; se ele é interrompido, todos os efeitos se dispersam, e também a realidade. Ora, temos bem a impressão que a América é feita de uma comutação fantástica de elementos semelhantes, e que tudo se mantém apenas no fio de um raio luminoso, de um raio laser que conduz sob os nossos olhos a realidade americana. O espectral aqui não é o fantasmal ou a dança dos espectros, é o espectro da dispersão da luz.”
Escrita, assim, no limiar entre uma descrição alucinada de quem ainda não saiu verdadeiramente da “viagem” – real ou sonhada – e a flutuação conceptual de quem já desliza na superfície de uma banda de Moebius feita de néon fluorescente, como o surfista de uma topologia pós-euclidiana, a América de Baudrillard é a perspectiva psicadélica da modernidade instalada no décimo terceiro piso inacabado da pirâmide na nota do dollar americano. Vanishing point…
“Highway” foi o nome da peça de Noah Creshevsky que acompanhou o fundo desta crónica, e “Strategic Defense Initiative” (composta em 1986) a que escutámos logo de seguida. Elas representam aquilo a que o compositor americano chamou de “hiper-realismo musical”, ou seja, “uma linguagem electro-acústica construída com sons encontrados num ambiente partilhado, manipuladas de forma exagerada ou intensa”.
É o próprio que se refere à sua experiência deste modo: “A América não é nem um sonho, nem uma realidade, é uma hiperrealidade. É uma hiperrealidade porque é uma utopia que desde o início foi assumida como realizada. Tudo aí é real, pragmático, e tudo nos torna sonhadores. Talvez a verdade da América apenas possa aparecer a um europeu, já que apenas ele encontra aí o simulacro perfeito, o da imanência e da transcrição material de todos os valores. Os americanos, eles, não têm nenhum sentido da simulação. Eles são a sua configuração perfeita, mas não têm a linguagem desta, na medida em que são eles o seu modelo.”
O livro editado em 1986, depois de uma viagem e estadia nos Estados Unidos, parece o registo escrito de um delírio hiper-lúcido, provocado pela sobre-estimulação sensorial e intelectual do sociólogo, exposto a uma visão estranhamente familiar de um país cuja memória antecede e antecipa a sua experiência possível, ao ponto de fazer com que a realidade pareça imitar a sua representação. Contemporâneo do crescimento exponencial da digitalização e mediatização do real, o país surge-lhe, então, assim: “A América é um gigantesco holograma, no sentido em que a informação total está contida em cada um dos seus elementos. Tome-se a mais pequena estação de serviço no deserto, ou uma qualquer rua de uma cidade do Middle West, um parque de estacionamento, uma casa californiana, um Burger King ou um Studebaker, e obtém-se toda a América, a sul, a norte, a este como a oeste. Holográfica no sentido da luz coerente do laser, homogeneidade dos elementos simples conduzidos pelos mesmos feixes. Do ponto de vista visual e também plástico: temos a impressão de que as coisas estão feitas de uma matéria irreal, que elas giram e se deslocam no vazio como por um efeito luminoso especial, uma película que atravessamos sem nos apercebermos.
Com certeza o deserto, mas Las Vegas, a publicidade, e também a actividade das pessoas, public relations, electrónica da vida quotidiana, tudo se recorta com a plasticidade e a simplicidade de um sinal luminoso. O holograma está próximo do fantasma, é um sonho tridimensional, e podemos nele entrar como num sonho. Tudo se prende com a existência do raio luminoso que transporta as coisas; se ele é interrompido, todos os efeitos se dispersam, e também a realidade. Ora, temos bem a impressão que a América é feita de uma comutação fantástica de elementos semelhantes, e que tudo se mantém apenas no fio de um raio luminoso, de um raio laser que conduz sob os nossos olhos a realidade americana. O espectral aqui não é o fantasmal ou a dança dos espectros, é o espectro da dispersão da luz.”
Escrita, assim, no limiar entre uma descrição alucinada de quem ainda não saiu verdadeiramente da “viagem” – real ou sonhada – e a flutuação conceptual de quem já desliza na superfície de uma banda de Moebius feita de néon fluorescente, como o surfista de uma topologia pós-euclidiana, a América de Baudrillard é a perspectiva psicadélica da modernidade instalada no décimo terceiro piso inacabado da pirâmide na nota do dollar americano. Vanishing point…
“Highway” foi o nome da peça de Noah Creshevsky que acompanhou o fundo desta crónica, e “Strategic Defense Initiative” (composta em 1986) a que escutámos logo de seguida. Elas representam aquilo a que o compositor americano chamou de “hiper-realismo musical”, ou seja, “uma linguagem electro-acústica construída com sons encontrados num ambiente partilhado, manipuladas de forma exagerada ou intensa”.
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