Materialização do inconsciente em estruturas concretas para usufruto quotidiano, a arquitectura surrealista afigura-se, à partida, um empreendimento impossível devido à diferença entre as leis físicas, que regem o mundo objectivo, e as leis mentais, que regem o mundo subjectivo. Contudo, a fértil imaginação e sublime engenho de um conjunto restrito de indivíduos, permitiu a edificação de verdadeiras homenagens ao reino dos sonhos, as quais servirão de guião para algumas emissões.
No dia 9 de Setembro de 2010, o Laboratório Chimico debruçou-se sobre dois exemplares desta arte, ambos situados em França: o "Palais Idéal" de Ferdinand Cheval e a "Maison de Poupées".Começamos pelo "Palais Idéal", situado a sul de Lyon, na localidade de Hauterives. Este "Travail d'un seul homme" (como se pode ler numa das inscrições que adornam o edifício), constitui uma prova inequívoca da possibilidade do impossível quando confrontado com um espiríto persistente e hiper-criativo. Homem de poucos estudos e origens modestas, nascido em 1836 e carteiro de profissão, Ferdinand Cheval iniciou esta grandiosa obra em Abril de 1879, para apenas terminar 33 anos mais tarde. Recorda as suas rondas de entrega do correio, prévias ao início dos labores, como fulcrais para exercitar o seu imaginário: "What else is there to do when one is constantly walking in the same setting, apart from dreaming? To fill my thoughts, I built in my dreams a magical palace…". O pretexto para passar do onirismo à acção, aconteceu precisamente numa dessas rondas, ao tropeçar numa pedra que o impressionou pela forma e feitio. Esta foi a primeira de milhares de pedras que diligentemente começou a recolher diariamente, e que à noite, sob a ténue luz de um candeeiro a óleo, incorporava no seu palácio fantástico.
Le Palais Idéal
A descrição por palavras das intricassias infinitamente complexas decorrentes do meticuloso arranjo das pedras, invocando mútiplas mitologias e criaturas fantásticas numa amálgama unicamente possível em sonhos mirabolantes, revelar-se-ia sempre incompleta, por muitos pormenores que contivesse. Não será assim de estranhar que, pouco tempo antes da sua morte, o facteur Cheval visse o seu trabalho ser reconhecido por personagens proeminentes do surrrealismo, como André Breton e Max Ernst (que inclusivamente criou uma colagem intitulada "The Postman Cheval"). Tal reconhecimento culminaria em 1969, quando o Ministro da Cultura André Malraux declarou o "Palais Idéal" como marco cultural e património nacional.
Max Ernst - "The Postman Cheval" (1932)
A informação disponível sobre a "Maison de Poupées" é bem mais escassa. Com efeito, sobre este curioso edifício apenas dispomos dos dados contidos num pequeno artigo publicado no terceiro volume da "Strange Attractor" de 2006, da autoria de Robert Ansell, co-fundador e director artístico da Fulgur Limited, uma editora especializada em esoterismo contemporâneo. As coordenadas da sua localização são desconhecidas e as fotografias mostram uma singela casa de campo, sobre a qual uma mente irrequieta, certamente imbuída daquele humor negro que André Breton falava, foi obsessivamente acumulando bonecas de plástico, brinquedos variados, duendes de jardim e outros que tais. O efeito produzido é semelhante ao eclodir da floração nas imensas roseiras da Rosarie du Val-de-Marne à l'Haÿ-les-Roses, mas, ao invés de flores multicolores, das paredes deste casebre no sul de França, brotaram milhentos resquícios de sonhos infantis olvidados. Aqui fica um excerto do artigo:
"Deep in the heart of southern France, amid the lavender, lemon groves and cicadas, rests an extraordinary house (...) reaching the far entrance, the visitor finds a vast graveyard of giant stuffed toys. Sagging and mould-ridden, astride slides, bicycles and plastic play equipment, it is not hard to imagine they were perhaps once enjoying a child's party. Then, in a surreal Pompeian tragedy, adulthood erupted and rained upon the eldricht scene, freezing it for eternity (...) It is as if Hans Bellmer and Joseph Ferdinand Cheval had collaborated under the direction of Breton himself to create a mysterious, mocking, menagerie. Raw and flawed, la maison de poupées is a rare jewel indeed".
A escolha da banda sonora obedeceu ao mote "música surrealista para uma arquitectura surrealista":
Nurse With Wound - "June 9" (Shipwreck Radio Volume Two: Eight Enigmatic Episodes From Utvaer)
Andrew Liles - "Come And See" (All Closed Doors)
Andrew Liles - "An Eternal Quest" (All Closed Doors)
Salvador Dalí & Igor Wakhévitch - "Troisième Entrée Et Première Sortie" (Être Dieu: Opéra-poème, Audiovisuel et Cathare en Six Parties)
Edgar Varèse - "Density 21.5" (Complete Works Of Edgar Varèse: Volume 1)
Andrew Liles & Jean-Hervé Péron - "The Drummer Is On Valium" (Fini!)
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