Interstellar Overdrive

Se o bairro de Haight-Ashbury, em São Francisco, foi a clareira onde ocorreu a explosão colorida por padrões florais dos hippies, os quais protestavam com a sua estratégia pacifista contra a guerra do Vietnam e promoviam o alargamento da consciência por via química e pela prática do amor livre, com o fim de minar a fixidez da moral puritana e dos bons costumes, na metrópole do antigo império britânico, as mudanças exigiam uma outra sofisticação que tornasse eficaz a transformação de uma estrutura social mais estratificada e de uma cultura velha de muitos séculos de história. No entanto, nessa segunda metade da década de 60 tinha começado já o “render da velha guarda”. Quatro jovens de Liverpool haviam já revolucionado os ciclos menstruais das jovens inglesas, Mary Quant inventara a mini-saia e Twiggy era um ídolo para todas as raparigas acabadas de sair do colégio, as scooters e os Mini Morris davam uma nova mobilidade aos jovens oriundos de classes menos afortunadas e a moda tornara-se o novo código da revolução geracional: contras os trads reinavam agora os mods. Por conseguinte, o já velho símbolo britânico, a Union Jack, era agora reciclado e estampado nos acessórios de moda. A capital do Reino Unido agitava-se, então, a um ritmo frenético e a revista Time já lhe chamava a “Swinging London”. A Carnaby Street ou o UFO Club eram, em 1966 e 1967, pontos obrigatórios para aqueles que observavam e sobretudo para os que queriam ser observados.



Peter Whitehead, um jovem peeping-tom, que filmara pouco tempo antes “Wholly Communion”, um documentário sobre o encontro de poetas beat americanos na capital inglesa, e que captara com a sua objectiva os escândalos da peça de Peter Brook e dos Rolling Stones no Royal Albert Hall, tornara-se amigo de Syd Barrett, genial colega de uma nova sensibilidade artística, que tinha uma banda de rock psicadélico: os Pink Floyd. Teve a ideia de fazer um filme sobre toda essa agitação londrina e pediu-lhes para o deixarem filmá-los a gravar uma sessão mais ou menos improvisada de uma música saturada de ecos, reverberações e distorções, onde os riffs do rock eram apenas como que um leitmotiv para longas improvisações inspiradas e capazes de inspirar viagens interestelares num espaço acústico electrificado. “Interstellar Overdrive” e “Nick’s Boogie” - meia hora de alucinação sonora - tornar-se-iam a banda sonora de “Tonite Let’s All Make Love in London”, “pop concerto for film”, como lhe chamou Peter Whitehead, saturado de néons, jogos de luzes, ícones da moda, sinais de trânsito, painéis publicitários e jovens de collants e mini-saia, cortes de cabelo à tijela, entrecortados ora pelas imagens do concerto no UFO Club e da gravação de estúdio feita pelos Pink Floyd ora por entrevistas a Julie Christie, Mick Jagger, Michael Caine, Dolly Bird e David Hockney, que falavam sobre as particularidades desse zeitgeist que o filme tão artisticamente documentava, sob o motto do poeta americano Allen Ginsberg. A leitura do poema “Who Be Kind To”, de onde foi retirado o título do filme, e a presença da Vanessa Redgrave que, a dado momento do filme, entoa um canto de protesto cubano esclarecem que a intenção do realizador não era apenas ilustrar com imagens em movimento o epíteto criado pela revista Time de uma Londres fashion, onde só haveria divertimento e jogos de luzes, mas mostrar a dialéctica cifrada da história numa época de crise cultural e de crítica contra-cultural: uma época de mudança.

A versão de “Interstellar Overdrive” que serviu de banda sonora ao filme de Whitehead, juntamente com “Nicks Boogie”, foi a primeira gravação de estúdio alguma vez feita pelos Pink Floyd, mas apenas seria editada em disco nos anos 90, no EP “London ’66-‘67” e como banda sonora de “Tonite Let’s All Make Love in London”, pela See Miles Records, onde marcam presença ainda os excertos das entrevistas às personalidades já referidas. Esta versão é, pois, diferente da que ficaria incluída no primeiro álbum do grupo, “The Piper at The Gates of Dawn” de 1967 e da versão utilizada também como banda sonora de um outro filme experimental, realizado por um colaborador de Whitehead, Anthony Stern, e produzido pelo BFI, denominado “San Francisco” (1968), um monumento visual feito a partir de fotografias da capital psicadélica da Califórnia.



A segunda metade do filme de Anthony Stern, aqui.
Uma pequena nota biográfica de Peter Whitehead, em português.
Um excerto de um documentário sobre Peter Whitehead comentando "Tonite Let's All...", no Youtube.

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