Wilfried Sätty

"There is a time in the span of civilizations when creative energy and the human spirit are wholly, if briefly focused. When this occurs culture in all its manifestations reaches its zenith. The moment passes; civilizations decline, only to be replaced by others. This process of life appears cyclic. Communities become tribes, turn into nations and become empires which, like suns, radiate their energy to the limits of their power, then decay and finally vanish, leaving behind only traces."

Wilfried Sätty, "Time Zone"

A introdução da colagem enquanto forma de expressão artística remonta ao Cubismo, mas foram sobretudo os subsequentes movimentos Dada e Surrealista que dela se apropriaram como prática quotidiana, em perfeita harmonia e consonância com os seus desígnios, expressos na fórmula alquímica de Lautréamont de um "encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda chuvas numa mesa de dissecação". Max Ernst, expoente máximo da colagem no período entre guerras, aprofundou e aperfeiçou a técnica, que descrevia como "um encontro de duas realidades distantes num plano alheio a ambas". A iluminação ocorreu no final dos anos 20, ao folhear um catálogo mecânico da época Victoriana onde descobriu...

"elements of figuration so remote that the sheer absurdity of that collection provoked a sudden intensification of the visionary faculties in me and brought forth an hallucinatory succession of contradictory signs"


Gravura retirada de "Une Semaine de Bonté" de Max Ernst


As gravuras que ilustravam os velhos livros victorianos passaram assim a constituir o portal para além do qual do qual Ernst colonizava novos mundos fundados no seu imaginário, os tijolos que lhe serviram de matéria prima para erguer os romances pictóricos "La Femme 100 Têtes" (1929), "Reve d'une Petite Fille Qui Voulut Entrer au Carmel" (1930), e "Une Semaine de Bonté" (1934). Estas apresentavam ainda uma vantagem significativa em relação às fotografias, pois podiam ser conjugadas de mil e uma formas em quadros de coesão sublime, evitando as descontinuidades de luz e sombra, de focos constrastantes ou de cores conflitivas, resultantes da sobreposição de fotografias.

Gravura retirada de "La Femme 100 Têtes" de Max Ernst

Anos mais tarde muitos outros indivíduos lhe seguiram a pisadas. Norman Rubington, sob o nome Akbar Del Piombo, criou a série "Far Out Books" em 1961 , e Terry Gilliam explorou o potencial humorístico da colagem através dos interlúdios animados para "Monty Python's Flying Circus" e "Marty Feldman Comedy Machine". Recentemente, Jim Harter, conhecido por compilar antologias de ilustrações, publicou os livros "Journeys in the Mythic Sea" (1985) e "Initiations in the Abyss"(2002), atestando a vitalidade contemporânea da colagem.

Mas entre Harter e Rubington, encontra-se uma outra figura notável, que o Laboratório Chimico de 15 de Janeiro de 2009 procurou resgatar dos tentáculos da obscuridade onde se encontra agrilhoada há várias décadas: Wilfried Sätty.

Gravura retirada de "Time Zone" de Wilfried Sätty

Nascido Wilfried Podreich no ano de 1939 em Bremen, cidade de história milenar que foi reduzida a escombros numa mão cheia de infernais bombardeamentos nocturnos, descreveria anos mais tarde os cenários apocalípticos onde passara a sua juventude como um gigantesco recreio surrealista. Estas experiências íntimas com o thanatos (des)humano fariam certamente parte da sua bagagem quando emigrou com destino incerto, e a sua influência é palpável nas obras que produziu. Os ventos acabariam por conduzi-lo a São Francisco, curiosamente uma outra cidade com historial de destruição, que nos anos 60 fervilhava de intensa actividade artística e cultural, tipificando o zénite civilizacional a que Sätty faz alusão no seu romance pictórico "Time Zone" (ver citação no início).


Wilfried Sätty na sua casa em São Francisco, "North Beach U-Boat"


Instalou-se numa velha casa victoriana, baptizada "North Beach U-Boat" pelo seu amigo David Singer, que rapidamente transformou num intricado complexo de salas e escadarias, saturadas de incenso e povoadas por livros antigos, numa reprodução progressivamente fiel das dobras heterógeneas que compunham a sua mente. O seu santuário pessoal acabaria por se tornar uma autêntica Meca californiana, em torno da qual os peregrinos da contracultura americana diligentemente se percepitavam. Era também o palco de incontáveis festas orgiásticas que, assim como as suas gravuras, eram povoadas por personagens tão excêntricas e díspares entre si como o fundador da Church of Satan Anton LaVey ou o actor Michael Douglas. Nos primeiros anos de actividade, Sätty socorreu-se dos posters como principal meio de subsistência e tubo de escape expressivo, seguindo assim os trilhos calcorreados por Toulouse Lautrec e Alphonse Mucha décadas antes. Outra grande fatia do seu trabalho era devotada a compor gravuras para uma imberbe Rolling Stone, as quais acabariam por ser compiladas num dos seus dois livros de originais, "The Cosmic Bicycle" (Straight Arrow Books, 1971). As suas colagens, de natureza bizarra, excêntrica e extravagante, eram pasto suculento para divagações oníricas, e prestavam tributo a Max Ernst, tanto pelo surrealismo latejante como pela preferência por gravuras de velhos livros empoeirados.

Gravura retirada de "The Cosmic Bicycle" de Wilfried Sätty


O outro original trata-se do já mencionado "Time Zone" (Straight Arrow Books, 1973) que, ao contrário do manto de retalhos constantes em "The Cosmic Bicycle", possuía uma narrativa própria e permitia ao leitor imergir completamente no mundo de Sätty. A primeira metade da década de 70 seria a sua época mais produtiva, com a ilustração de "The Annotated Dracula" (1975), "The Hashish Eater" (1975), e "The illustrated Edgar Allan Poe" (1976), para além de capas para vários discos que formaram a banda sonora para o programa dedicado a Sätty:

Beaver & Krause - "Ghandarva" (1971)
V.A. - "The Occult Explosion" (1973)
Sopwith Camel - "The Miraculous Hump Returns From The Moon (1975)
George Duke - "Feel" (1974)
George Duke - "The Aura Will Prevail" (1975)


Ilustração de Wilfried Sätty para a capa do duplo LP "The Occult Explosion" (United Artists, 1973), disponível para download aqui

Se os trabalhos de ilustração supracitados são dominados por uma obsessão com a vertente mais negra do Homem, e os escritores visados - Bram Stoker, Fitz Hugh Ludlow e Edgar Allan Poe - haviam sido pródigos nesse campo, também é certo que em "Time Zone" se notava já alguma nostalgia pela experiência americana psicadélica, que no ano de 1973 esmorecia e decaía, afogada em pântanos utópicos que se revelavam estéreis e ingénuos. O idealismo dava lugar ao pessimismo e a arte de Sätty perdeu-se no esquecimento após a sua morte em 1982. No estilo anedóctico e irónico que tão bem lhe convém, o destino acabaria por pregar uma partida cósmica a Sätty, que morreu pelas garras dos mecanismos que ele próprio tinha congeminado para sua protecção. Os labirintos e escadarias do seu bunker, onde furtivamente se escondia da crueldade de uma humanidade que considerava desumana desde os bombardeamentos da sua infância, eram na verdade um convite à fatalidade. E foi assim que um dia Sätty tropeçou e caiu...

Para visualizar uma galeria com outras gravuras do autor, uma lista cronológica das suas obras, artigos e entrevistas, e a sua certidão de óbito basta visitarem este local.

Como base para este texto foi utilizado o artigo "Sandoz in the Rain: The Life and Art of Wilfried Sätty" da autoria de John Coulthart, publicado no segundo volume do Strange Attractor Journal.

Download do programa em formato podcast aqui.

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