Antonin Artaud e o Peyotl

"No México na montanha tomei Peyotl e tive uma porção que deu para estar dois ou três dias com os Tarahumaras, e três dias que achei nessa altura os mais felizes da minha vida.
Deixei de me aborrecer, de procurar razão para viver e já não carregava com o meu corpo.
Compreendi que inventava a vida, minha função e razão de ser, me aborrecia se a imaginação faltava e o Peyotl era capaz de ma dar.
Apareceu um ser e de repente fez o Peyotl sair de mim.
Dei-lhe uma grande sova e sei lá onde é que o cadáver de um homem foi despedaçado e encontrado aos bocados.

rei dá kanká dá kum a kum dá ná kum vonoh

E este mundo uma vez que não é o inverso do outro e menos ainda a sua metade,
de igual modo será este mundo uma real máquina cuja alavanca de comando está em meu poder, verdadeira fábrica que tem por chave o humor-nato.

saná tafã taná tanaf tamafts baí"

[Antonin Artaud, "Uma nota sobre o Peyotl" in Os Tarahumaras, trad. Aníbal Fernandes, Relógio d'Água, 2000]


Esta "Nota sobre o Peyotl" foi escrita por Antonin Artaud em 1947, no momento em que se publicava um outro texto "O Rito do Peyotl entre os Tarahumaras", no âmbito de um projecto editorial que começara em 1937, a propósito de uma viagem ao México, feita no ano anterior, em que Artaud tomara contacto com essa tribo ameríndia e com os seus rituais. O conjunto de textos reunidos sob o simples título "Les Tarahumaras" relata de um modo fascinado e, por vezes, extático, as experiências com essa planta enteógena que os Tarahumaras cultivavam e consumiam, por ocasião das suas festas religiosas tradicionais. Segundo John Forester - nada mais, nada menos que o próprio Artaud - a "vida dos Tarahumaras gira toda ela à volta do rito erótico do Peyotl", pois a "raiz do Peyotl é hermafrodita (...) contém a forma de um sexo de homem e de mulher reunidos". Ainda segundo o escritor francês, os "Tarahumaras não crêem em Deus e a palavra «Deus» nem sequer existe na sua língua; mas prestam culto a um princípio transcendente da Natureza que é Macho e Fêmea como deve ser". Não obstante estas afirmações de Artaud, a verdade é que nos anos trinta, quando ele visitou os índios mexicanos, já os seus ritos sagrados estavam contaminados pela influência cristã que gerava um efeito de mestiçagem na cultura dessa tribo que o governo regional procurava controlar, sobretudo, devido aos excessos cometidos sob o efeito dessa planta psicoactiva, tendo mesmo chegado a destruir plantações de Peyotl. Graças à mediação do próprio Artaud, o qual havia sido enviado pelo Governo francês para uma escola indígena, foi possível retomar um uso controlado do Peyotl nos rituais religiosos, aos quais pôde assistir e neles participar, saindo dessas experiências completamente transformado, como pode ler-se no excerto supra-citado. A impressão foi tal que até à data da sua morte em 1948, Artaud foi escrevendo textos sobre o Peyotl e os Tarahumaras, nomeadamente, a "Danse du Peyotl" e o, já referido, "Le Rite du Peyotl chez les tarahumaras" (que pode escutar-se em francês aqui).

Em 1947, Artaud escreveu um programa de rádio "Pour en finir avec le jugement de Dieu", onde incluíu uma versão do texto "La danse du Tutuguri". Apesar de o programa ter sido imediatamente proibido, devido ao seu carácter escandaloso e revolucionário, as gravações chegaram aos dias de hoje. Existe uma edição de 1996 pela editora belga SubRosa de todo o programa.
Para além disso, em 1970, o compositor francês Pierre Henry é convidado a realizar uma obra radiofónica para o Festival de Arte Contemporânea de Royan que ele realiza em homenagem a Antonin Artaud e predominantemente inspirada nos textos sobre a viagem ao país dos Tarahumaras. Também em 1996, a editora francesa Mantra Records torna pública "Fragments pour Artaud".

Para saber mais sobre Artaud e o Peyotl, um texto de Arnaud Hubert.
Sobre o Peyotl, i. e, a Lophophora williamsii e a sua cultura pelos índios do México, aqui.

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