Mati Klarwein e a face visível dos discos

[Aleph Sanctuary, 1963-70]

Todo o discófilo sabe que a experiência de um álbum começa muitas vezes por uma sedução visual. Evidentemente, esta verdade vai perdendo a sua intensidade à medida que o comércio discográfico se virtualiza, no entanto, houve tempos em que os editores, os músicos e os coleccionadores apostavam na capa de um disco como numa obra de arte. Essa relação tão próxima entre o visível e o audível foi ainda mais importante numa altura em que a escuta de um disco se fazia segundo um ritual sinestésico: a música libertava imagens e estas contextualizavam os sons, deslizando como numa fita de Moëbius entre uma sensação e outra. A pintura de Mati Klarwein pareceu ideal a músicos que quiseram explorar esta ideia de fusão entre sensações, imagens e sons, entre géneros e espécies, mas também entre experiências, raças, símbolos e culturas, para ilustrar as capas dos seus álbuns, abrindo assim a mente dos ouvintes à percepção de pequenas revoluções estéticas interiores.


Nascido em 1932 em Hamburgo, na Alemanha, de uma família judaica, é obrigado com a ascensão ao poder de Hitler a mudar-se com a família para a Palestina apenas com dois anos, onde cresceu na convivência com as culturas árabe, cristã e hebraica. Depois da 2ª Guerra Mundial, mudaram-se para Paris, cidade que lhe proporcionou a possibilidade de estudar pintura na Academia Julian de Belas-Artes com Fernand Léger. Mas a atracção pelo mediterrâneo levou-o depois para o sul de França, onde conheceu e conviveu com Ernst Fuchs, cuja pintura realista fantástica foi uma das suas maiores influências, juntamente com a do surrealista e extravagante Salvador Dali de quem mais tarde se tornaria também amigo. Na riviera francesa, conheceu uma mulher mais velha que se tornou a sua mecenas e o levou consigo numa viagem à volta do mundo, a qual lhe daria ricos e variados cenários para os seus quadros feitos de miscigenação e mestiçagem. Nos anos 60 viveu na animada e intensa baixa de Nova Iorque, onde se dava com a nata da vanguarda contra-cultural, de Andy Warhol a Jimi Hendrix, passando por Timothy Leary e as experiências com o LSD. Não obstante os esforços do pintor para afastar a conotação exclusiva entre a sua pintura e a arte psicadélica, a verdade é que dessa reputação não se livrou e ainda hoje, nas exposições sobre a arte daquela época, o seu nome é presença incontornável. Entre 1963 e 1970, Mati Klarwein realiza uma instalação a que chamou “Aleph Sanctuary”, como o próprio nome indica, era uma espécie de santuário icónico onde o artista ostendia dezenas dos seus quadros mais vibrantes de cores e figuras heterodoxas, um misto de paisagens surrealistas, figuras da pop art e padrões multi-étnicos.

Esta capela de excessos multi-colores foi o espaço apropriado para muitos curtirem extâses de alucinação, entre os quais o músico Carlos Santana que aí descobriu, “Annunciation”, a capa para o seu álbum Abraxas, de 1970. Pela mesma altura, Miles Davis, que se preparava para desviar a “forma do jazz por vir” para uma rota de fusão com o rock e a electricidade, escolheu Klarwein para pintar a capa do seu “Bitches Brew” (1970) e depois “Live Evil”(1971) com um díptico do pintor. O trompetista haveria de lhe encomendar uma capa para um álbum onde Betty Davis, a sua esposa de então, emprestava a voz, mas descobrindo que esta o enganava com o músico Jimi Hendrix, de quem Mati era também amigo, Miles Davis decidiu cancelar o álbum e a encomenda. O quadro “Zonked” foi ainda assim pintado e serviria mais tarde para a capa de um álbum dos The Last Poets. Jackie McLean, Osibisa, Tempest, Buddy Miles, Eric Dolphy, Leonard Bernstein ou Jon Hassell são apenas alguns dos nomes que, entre os anos 60 e 90, recorreram às capas pintadas por Mati Klarwein. Mas a sua fama haveria de ficar sobretudo ligada aos anos 60/70 e aos extâses visuais proporcionados pelas suas alucinações gráficas.

[Grain of Sand, 1963]

Mais informações:

www.matiklarweinart.com

Rob Young sobre 3 capas de Klarwein em discos de Jon Hassell.

Uma entrevista a Mati Klarwein.

Slideshow de obras de Klarwein comentadas pelo cómico Dave Chapelle.


Durante o Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras ouviu-se:
Miles Davis - "Pharao's Dance" (Bitches Brew, disco 1, lado A) 1970
Santana - "Swinging winds, Crying beasts" (Abraxas) 1970
Eric Dolphy - "Iron Man" (Iron Man) 1963

[Zonked, 1971]

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