Interstellar Overdrive

Se o bairro de Haight-Ashbury, em São Francisco, foi a clareira onde ocorreu a explosão colorida por padrões florais dos hippies, os quais protestavam com a sua estratégia pacifista contra a guerra do Vietnam e promoviam o alargamento da consciência por via química e pela prática do amor livre, com o fim de minar a fixidez da moral puritana e dos bons costumes, na metrópole do antigo império britânico, as mudanças exigiam uma outra sofisticação que tornasse eficaz a transformação de uma estrutura social mais estratificada e de uma cultura velha de muitos séculos de história. No entanto, nessa segunda metade da década de 60 tinha começado já o “render da velha guarda”. Quatro jovens de Liverpool haviam já revolucionado os ciclos menstruais das jovens inglesas, Mary Quant inventara a mini-saia e Twiggy era um ídolo para todas as raparigas acabadas de sair do colégio, as scooters e os Mini Morris davam uma nova mobilidade aos jovens oriundos de classes menos afortunadas e a moda tornara-se o novo código da revolução geracional: contras os trads reinavam agora os mods. Por conseguinte, o já velho símbolo britânico, a Union Jack, era agora reciclado e estampado nos acessórios de moda. A capital do Reino Unido agitava-se, então, a um ritmo frenético e a revista Time já lhe chamava a “Swinging London”. A Carnaby Street ou o UFO Club eram, em 1966 e 1967, pontos obrigatórios para aqueles que observavam e sobretudo para os que queriam ser observados.



Peter Whitehead, um jovem peeping-tom, que filmara pouco tempo antes “Wholly Communion”, um documentário sobre o encontro de poetas beat americanos na capital inglesa, e que captara com a sua objectiva os escândalos da peça de Peter Brook e dos Rolling Stones no Royal Albert Hall, tornara-se amigo de Syd Barrett, genial colega de uma nova sensibilidade artística, que tinha uma banda de rock psicadélico: os Pink Floyd. Teve a ideia de fazer um filme sobre toda essa agitação londrina e pediu-lhes para o deixarem filmá-los a gravar uma sessão mais ou menos improvisada de uma música saturada de ecos, reverberações e distorções, onde os riffs do rock eram apenas como que um leitmotiv para longas improvisações inspiradas e capazes de inspirar viagens interestelares num espaço acústico electrificado. “Interstellar Overdrive” e “Nick’s Boogie” - meia hora de alucinação sonora - tornar-se-iam a banda sonora de “Tonite Let’s All Make Love in London”, “pop concerto for film”, como lhe chamou Peter Whitehead, saturado de néons, jogos de luzes, ícones da moda, sinais de trânsito, painéis publicitários e jovens de collants e mini-saia, cortes de cabelo à tijela, entrecortados ora pelas imagens do concerto no UFO Club e da gravação de estúdio feita pelos Pink Floyd ora por entrevistas a Julie Christie, Mick Jagger, Michael Caine, Dolly Bird e David Hockney, que falavam sobre as particularidades desse zeitgeist que o filme tão artisticamente documentava, sob o motto do poeta americano Allen Ginsberg. A leitura do poema “Who Be Kind To”, de onde foi retirado o título do filme, e a presença da Vanessa Redgrave que, a dado momento do filme, entoa um canto de protesto cubano esclarecem que a intenção do realizador não era apenas ilustrar com imagens em movimento o epíteto criado pela revista Time de uma Londres fashion, onde só haveria divertimento e jogos de luzes, mas mostrar a dialéctica cifrada da história numa época de crise cultural e de crítica contra-cultural: uma época de mudança.

A versão de “Interstellar Overdrive” que serviu de banda sonora ao filme de Whitehead, juntamente com “Nicks Boogie”, foi a primeira gravação de estúdio alguma vez feita pelos Pink Floyd, mas apenas seria editada em disco nos anos 90, no EP “London ’66-‘67” e como banda sonora de “Tonite Let’s All Make Love in London”, pela See Miles Records, onde marcam presença ainda os excertos das entrevistas às personalidades já referidas. Esta versão é, pois, diferente da que ficaria incluída no primeiro álbum do grupo, “The Piper at The Gates of Dawn” de 1967 e da versão utilizada também como banda sonora de um outro filme experimental, realizado por um colaborador de Whitehead, Anthony Stern, e produzido pelo BFI, denominado “San Francisco” (1968), um monumento visual feito a partir de fotografias da capital psicadélica da Califórnia.



A segunda metade do filme de Anthony Stern, aqui.
Uma pequena nota biográfica de Peter Whitehead, em português.
Um excerto de um documentário sobre Peter Whitehead comentando "Tonite Let's All...", no Youtube.

What shall we do tonight?

WHO BE KIND TO

Be kind to your self, it is only one
and perishable
of many on the planet, thou art that
one that wishes a soft finger tracing the
line of feeling from nipple to pubes--
one that wishes a tongue to kiss your armpit,
a lip to kiss your cheek inside your
whiteness thigh--
Be kind to yourself Harry, because unkindness
comes when the body explodes
napalm cancer and the deathbed in Vietnam
is a strange place to dream of trees
leaning over and angry American faces
grinning with sleepwalk terror over your
last eye--
Be kind to yourself, because the bliss of your own
kindness will flood the police tomorrow,
because the cow weeps in the field and the
mouse weeps in the cat hole--
Be kind to this place, which is your present
habitation, with derrick and radar tower
and flower in the ancient brook--
Be kind to your neighbor who weeps
solid tears on the television sofa,
he has no other home, and hears nothing
but the hard voice of telephones
Click, buzz, switch channel and the inspired
melodrama disappears
and he's left alone for the night, he disappears
in bed--
Be kind to your disappearing mother and
father gazing out the terrace window
as milk truck and hearse turn the corner
Be kind to the politician weeping in the galleries
of Whitehall, Kremlin, White House
Louvre and Phoenix City
aged, large nosed, angry, nervously dialing
the bald voice box connected to
electrodes underground converging thru
wires vaster than a kitten's eye can see
on the mushroom shaped fear-lobe under
the ear of Sleeping Dr. Einstein
crawling with worms, crawling with worms, crawling
with worms the hour has come--
Sick, dissatisfied, unloved the bulky
foreheads of Captain Premier President
Sir Comrade Fear!
Be kind to the fearful one at your side
Who's remembering the Lamentations
of the bible
the prophesies of the Crucified Adam Son
of all the porters and char men of
Bellgravia--
Be kind to your self who weeps under
the Moscow moon and hide your bliss hairs
under raincoat and suede Levi's--
For this is the joy to be born, the kindness
received thru strange eyeglasses on
a bus thru Kensington,
the finger touch of the Londoner on your thumb,
that borrows light from your cigarrette,
the morning smile at Newcastle Central
station, when longhair Tom blond husband
greets the bearded stranger of telephones--
the boom bom that bounces in the joyful
bowels as the Liverpool Minstrels of
CavernSink
raise up their joyful voices and guitars
in electric Afric hurrah
for Jerusalem--
The saints come marching in, Twist &
Shout, and Gates of Eden are named
in Albion again
Hope sings a black psalm from Nigeria,
and a white psalm echoes in Detroit
and reechoes amplified from Nottingham to Prague
and a Chinese psalm will be heard, if we all
live our lives for the next 6 decades--
Be kind to the Chinese psalm in the red transistor
in your breast--
Be kind to the Monk in the 5 Spot who plays
lone chord-bangs on his vast piano
lost in space on a bench and hearing himself
in the nightclub universe--
Be kind to the heroes that have lost their
names in the newspaper
and hear only their own supplications for
the peaceful kiss of sex in the giant
auditoriums of the planet,
nameless voices crying for kindness in the orchestra,
screaming in anguish that bliss come true
and sparrows sing another hundred years
to white haired babes
and poets be fools of their own desire--O Anacreon
and angelic Shelley!
Guide these new-nippled generations on space
ships to Mars' next universe
The prayer is to man and girl, the only
gods, the only lords of Kingdoms of
Feeling, Christs of their own
living ribs--
Bicycle chain and machine gun, fear sneer
& smell cold logic of the Dream Bomb
have come to Saigon, Johannesburg
Dominica City, Phnom Penh, Pentagon
Paris and Lhasa--
Be kind to the universe of Self that
trembles and shudders and thrills
in XX Century,
that opens its eyes and belly and breast
chained with flesh to feel
the myriad flowers of bliss
that I Am to Thee--
A dream! a Dream! I don't want to be alone!
I want to know that I am loved!
I want the orgy of our flesh, orgy
of all eyes happy, orgy of the soul
kissing and blessing its mortal-grown
body,
orgy of tenderness beneath the neck, orgy of
kindness to thigh and vagina
Desire given with meat hand
and cock, desire taken with
mouth and ass, desire returned
to the last sigh!
Tonite let's all make love in London
as if it were 2001 the years
of thrilling god--
And be kind to the poor soul that cries in
a crack of the pavement because he
has no body--
Prayers to the ghosts and demons, the
lackloves of Capitals & Congresses
who make sadistic noises
on the radio--
Statue destroyers & tank captains, unhappy
murderers in Mekong & Stanleyville,

That a new kind of man has come to his bliss

to end the cold war he has borne
against his own kind flesh
since the days of the snake.

Allen Ginsberg, June 8, 1965

Tomorrow never knows?

Amanhã, dia 29 de Janeiro de 2009, num laboratório perto de si:

Mati Klarwein e a face visível dos discos

[Aleph Sanctuary, 1963-70]

Todo o discófilo sabe que a experiência de um álbum começa muitas vezes por uma sedução visual. Evidentemente, esta verdade vai perdendo a sua intensidade à medida que o comércio discográfico se virtualiza, no entanto, houve tempos em que os editores, os músicos e os coleccionadores apostavam na capa de um disco como numa obra de arte. Essa relação tão próxima entre o visível e o audível foi ainda mais importante numa altura em que a escuta de um disco se fazia segundo um ritual sinestésico: a música libertava imagens e estas contextualizavam os sons, deslizando como numa fita de Moëbius entre uma sensação e outra. A pintura de Mati Klarwein pareceu ideal a músicos que quiseram explorar esta ideia de fusão entre sensações, imagens e sons, entre géneros e espécies, mas também entre experiências, raças, símbolos e culturas, para ilustrar as capas dos seus álbuns, abrindo assim a mente dos ouvintes à percepção de pequenas revoluções estéticas interiores.


Nascido em 1932 em Hamburgo, na Alemanha, de uma família judaica, é obrigado com a ascensão ao poder de Hitler a mudar-se com a família para a Palestina apenas com dois anos, onde cresceu na convivência com as culturas árabe, cristã e hebraica. Depois da 2ª Guerra Mundial, mudaram-se para Paris, cidade que lhe proporcionou a possibilidade de estudar pintura na Academia Julian de Belas-Artes com Fernand Léger. Mas a atracção pelo mediterrâneo levou-o depois para o sul de França, onde conheceu e conviveu com Ernst Fuchs, cuja pintura realista fantástica foi uma das suas maiores influências, juntamente com a do surrealista e extravagante Salvador Dali de quem mais tarde se tornaria também amigo. Na riviera francesa, conheceu uma mulher mais velha que se tornou a sua mecenas e o levou consigo numa viagem à volta do mundo, a qual lhe daria ricos e variados cenários para os seus quadros feitos de miscigenação e mestiçagem. Nos anos 60 viveu na animada e intensa baixa de Nova Iorque, onde se dava com a nata da vanguarda contra-cultural, de Andy Warhol a Jimi Hendrix, passando por Timothy Leary e as experiências com o LSD. Não obstante os esforços do pintor para afastar a conotação exclusiva entre a sua pintura e a arte psicadélica, a verdade é que dessa reputação não se livrou e ainda hoje, nas exposições sobre a arte daquela época, o seu nome é presença incontornável. Entre 1963 e 1970, Mati Klarwein realiza uma instalação a que chamou “Aleph Sanctuary”, como o próprio nome indica, era uma espécie de santuário icónico onde o artista ostendia dezenas dos seus quadros mais vibrantes de cores e figuras heterodoxas, um misto de paisagens surrealistas, figuras da pop art e padrões multi-étnicos.

Esta capela de excessos multi-colores foi o espaço apropriado para muitos curtirem extâses de alucinação, entre os quais o músico Carlos Santana que aí descobriu, “Annunciation”, a capa para o seu álbum Abraxas, de 1970. Pela mesma altura, Miles Davis, que se preparava para desviar a “forma do jazz por vir” para uma rota de fusão com o rock e a electricidade, escolheu Klarwein para pintar a capa do seu “Bitches Brew” (1970) e depois “Live Evil”(1971) com um díptico do pintor. O trompetista haveria de lhe encomendar uma capa para um álbum onde Betty Davis, a sua esposa de então, emprestava a voz, mas descobrindo que esta o enganava com o músico Jimi Hendrix, de quem Mati era também amigo, Miles Davis decidiu cancelar o álbum e a encomenda. O quadro “Zonked” foi ainda assim pintado e serviria mais tarde para a capa de um álbum dos The Last Poets. Jackie McLean, Osibisa, Tempest, Buddy Miles, Eric Dolphy, Leonard Bernstein ou Jon Hassell são apenas alguns dos nomes que, entre os anos 60 e 90, recorreram às capas pintadas por Mati Klarwein. Mas a sua fama haveria de ficar sobretudo ligada aos anos 60/70 e aos extâses visuais proporcionados pelas suas alucinações gráficas.

[Grain of Sand, 1963]

Mais informações:

www.matiklarweinart.com

Rob Young sobre 3 capas de Klarwein em discos de Jon Hassell.

Uma entrevista a Mati Klarwein.

Slideshow de obras de Klarwein comentadas pelo cómico Dave Chapelle.


Durante o Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras ouviu-se:
Miles Davis - "Pharao's Dance" (Bitches Brew, disco 1, lado A) 1970
Santana - "Swinging winds, Crying beasts" (Abraxas) 1970
Eric Dolphy - "Iron Man" (Iron Man) 1963

[Zonked, 1971]

Wilfried Sätty

"There is a time in the span of civilizations when creative energy and the human spirit are wholly, if briefly focused. When this occurs culture in all its manifestations reaches its zenith. The moment passes; civilizations decline, only to be replaced by others. This process of life appears cyclic. Communities become tribes, turn into nations and become empires which, like suns, radiate their energy to the limits of their power, then decay and finally vanish, leaving behind only traces."

Wilfried Sätty, "Time Zone"

A introdução da colagem enquanto forma de expressão artística remonta ao Cubismo, mas foram sobretudo os subsequentes movimentos Dada e Surrealista que dela se apropriaram como prática quotidiana, em perfeita harmonia e consonância com os seus desígnios, expressos na fórmula alquímica de Lautréamont de um "encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda chuvas numa mesa de dissecação". Max Ernst, expoente máximo da colagem no período entre guerras, aprofundou e aperfeiçou a técnica, que descrevia como "um encontro de duas realidades distantes num plano alheio a ambas". A iluminação ocorreu no final dos anos 20, ao folhear um catálogo mecânico da época Victoriana onde descobriu...

"elements of figuration so remote that the sheer absurdity of that collection provoked a sudden intensification of the visionary faculties in me and brought forth an hallucinatory succession of contradictory signs"


Gravura retirada de "Une Semaine de Bonté" de Max Ernst


As gravuras que ilustravam os velhos livros victorianos passaram assim a constituir o portal para além do qual do qual Ernst colonizava novos mundos fundados no seu imaginário, os tijolos que lhe serviram de matéria prima para erguer os romances pictóricos "La Femme 100 Têtes" (1929), "Reve d'une Petite Fille Qui Voulut Entrer au Carmel" (1930), e "Une Semaine de Bonté" (1934). Estas apresentavam ainda uma vantagem significativa em relação às fotografias, pois podiam ser conjugadas de mil e uma formas em quadros de coesão sublime, evitando as descontinuidades de luz e sombra, de focos constrastantes ou de cores conflitivas, resultantes da sobreposição de fotografias.

Gravura retirada de "La Femme 100 Têtes" de Max Ernst

Anos mais tarde muitos outros indivíduos lhe seguiram a pisadas. Norman Rubington, sob o nome Akbar Del Piombo, criou a série "Far Out Books" em 1961 , e Terry Gilliam explorou o potencial humorístico da colagem através dos interlúdios animados para "Monty Python's Flying Circus" e "Marty Feldman Comedy Machine". Recentemente, Jim Harter, conhecido por compilar antologias de ilustrações, publicou os livros "Journeys in the Mythic Sea" (1985) e "Initiations in the Abyss"(2002), atestando a vitalidade contemporânea da colagem.

Mas entre Harter e Rubington, encontra-se uma outra figura notável, que o Laboratório Chimico de 15 de Janeiro de 2009 procurou resgatar dos tentáculos da obscuridade onde se encontra agrilhoada há várias décadas: Wilfried Sätty.

Gravura retirada de "Time Zone" de Wilfried Sätty

Nascido Wilfried Podreich no ano de 1939 em Bremen, cidade de história milenar que foi reduzida a escombros numa mão cheia de infernais bombardeamentos nocturnos, descreveria anos mais tarde os cenários apocalípticos onde passara a sua juventude como um gigantesco recreio surrealista. Estas experiências íntimas com o thanatos (des)humano fariam certamente parte da sua bagagem quando emigrou com destino incerto, e a sua influência é palpável nas obras que produziu. Os ventos acabariam por conduzi-lo a São Francisco, curiosamente uma outra cidade com historial de destruição, que nos anos 60 fervilhava de intensa actividade artística e cultural, tipificando o zénite civilizacional a que Sätty faz alusão no seu romance pictórico "Time Zone" (ver citação no início).


Wilfried Sätty na sua casa em São Francisco, "North Beach U-Boat"


Instalou-se numa velha casa victoriana, baptizada "North Beach U-Boat" pelo seu amigo David Singer, que rapidamente transformou num intricado complexo de salas e escadarias, saturadas de incenso e povoadas por livros antigos, numa reprodução progressivamente fiel das dobras heterógeneas que compunham a sua mente. O seu santuário pessoal acabaria por se tornar uma autêntica Meca californiana, em torno da qual os peregrinos da contracultura americana diligentemente se percepitavam. Era também o palco de incontáveis festas orgiásticas que, assim como as suas gravuras, eram povoadas por personagens tão excêntricas e díspares entre si como o fundador da Church of Satan Anton LaVey ou o actor Michael Douglas. Nos primeiros anos de actividade, Sätty socorreu-se dos posters como principal meio de subsistência e tubo de escape expressivo, seguindo assim os trilhos calcorreados por Toulouse Lautrec e Alphonse Mucha décadas antes. Outra grande fatia do seu trabalho era devotada a compor gravuras para uma imberbe Rolling Stone, as quais acabariam por ser compiladas num dos seus dois livros de originais, "The Cosmic Bicycle" (Straight Arrow Books, 1971). As suas colagens, de natureza bizarra, excêntrica e extravagante, eram pasto suculento para divagações oníricas, e prestavam tributo a Max Ernst, tanto pelo surrealismo latejante como pela preferência por gravuras de velhos livros empoeirados.

Gravura retirada de "The Cosmic Bicycle" de Wilfried Sätty


O outro original trata-se do já mencionado "Time Zone" (Straight Arrow Books, 1973) que, ao contrário do manto de retalhos constantes em "The Cosmic Bicycle", possuía uma narrativa própria e permitia ao leitor imergir completamente no mundo de Sätty. A primeira metade da década de 70 seria a sua época mais produtiva, com a ilustração de "The Annotated Dracula" (1975), "The Hashish Eater" (1975), e "The illustrated Edgar Allan Poe" (1976), para além de capas para vários discos que formaram a banda sonora para o programa dedicado a Sätty:

Beaver & Krause - "Ghandarva" (1971)
V.A. - "The Occult Explosion" (1973)
Sopwith Camel - "The Miraculous Hump Returns From The Moon (1975)
George Duke - "Feel" (1974)
George Duke - "The Aura Will Prevail" (1975)


Ilustração de Wilfried Sätty para a capa do duplo LP "The Occult Explosion" (United Artists, 1973), disponível para download aqui

Se os trabalhos de ilustração supracitados são dominados por uma obsessão com a vertente mais negra do Homem, e os escritores visados - Bram Stoker, Fitz Hugh Ludlow e Edgar Allan Poe - haviam sido pródigos nesse campo, também é certo que em "Time Zone" se notava já alguma nostalgia pela experiência americana psicadélica, que no ano de 1973 esmorecia e decaía, afogada em pântanos utópicos que se revelavam estéreis e ingénuos. O idealismo dava lugar ao pessimismo e a arte de Sätty perdeu-se no esquecimento após a sua morte em 1982. No estilo anedóctico e irónico que tão bem lhe convém, o destino acabaria por pregar uma partida cósmica a Sätty, que morreu pelas garras dos mecanismos que ele próprio tinha congeminado para sua protecção. Os labirintos e escadarias do seu bunker, onde furtivamente se escondia da crueldade de uma humanidade que considerava desumana desde os bombardeamentos da sua infância, eram na verdade um convite à fatalidade. E foi assim que um dia Sätty tropeçou e caiu...

Para visualizar uma galeria com outras gravuras do autor, uma lista cronológica das suas obras, artigos e entrevistas, e a sua certidão de óbito basta visitarem este local.

Como base para este texto foi utilizado o artigo "Sandoz in the Rain: The Life and Art of Wilfried Sätty" da autoria de John Coulthart, publicado no segundo volume do Strange Attractor Journal.

Download do programa em formato podcast aqui.

White Rabbit (Grace Slick)


Aborrecida ao lado da sua irmã, que lia um livro sem imagens nem diálogos, num dia quente que a fazia sentir-se sonolenta e um pouco estúpida, Alice preparava-se para fazer um colar de margaridas, quando um coelho branco de olhos cor de rosa passa a correr ao seu lado, apressando-se em retirar um relógio do bolso da sua jaqueta ao exclamar: “Oh dear! Oh dear! I shall be too late!” Surpreendida com tudo isto e despertada pela curiosidade, Alice corre atrás do coelho para dentro de uma toca. E assim começa um dos mais extraordinários contos para crianças, Alice no País das Maravilhas, escrito por Lewis Carroll, aliás, pelo reverendo Charles Dodgson, em 1865, tornando-se também uma das obras clássicas da literatura inglesa mais lidas à beira da cama dos meninos e meninas nos países anglo-saxónicos. Pelo menos, assim o fizeram os pais da menina Grace Barnett Wing e os ecrãs de cinema na América que nos seus olhos reflectiram as imagens do clássico homónimo da Disney, Alice in Wonderland. Em 1965, já casada com Jerry Slick e inspirada pela expressão do presidente americano Lyndon Johnson, Grace formou os The Great Society, onde era a principal vocalista e autora de grande parte das canções e das letras. Uma delas haveria de tornar-se num dos hinos da geração ácida nos Estados Unidos da América e, segundo as suas próprias palavras, uma estalada nos pais americanos que se espantavam e opunham a essa nova geração e à sua cultura psicadélica, quando haviam sido eles os próprios a cultivar as experiências da Alice com cogumelos, biscoitos e chás alucinogénios nos seus rebentos à hora de deitar.


Foi precisamente “White Rabbit”, a canção inspirada nesse coelho nervoso e apressado, o arauto da Rainha de Copas, que de modo fortuito arrastou Alice e Grace consigo para dentro de um mundo onde a lógica e a proporção desafiavam as suas consciências e as suas percepções, onde elas conheceram uma lagarta azul que fumava de um cachimbo de água, um gato de Cheshire cujo sorriso remanescia depois do seu desaparecimento e um louco chapeleiro a tomar chá com um rato silvestre para celebrar um não-aniversário. Um rol de referências codificadas poética e musicalmente no maior hit dos Jefferson Airplane, a banda que acolheu Grace Slick, para participar no segundo álbum do grupo, “Surrealistic Pillow”, editado em 1967, e que incluíu uma segunda versão de “White Rabbit”, tal como “Somebody to Love”, outro grande tema de Grace Slick, importado dos The Great Society.

A influência deste tema seria tão grande que acabaria por ser repetida vezes sem conta, em inúmeras e variadas versões, desde a de George Benson, no álbum com o mesmo nome de 1971 até Patti Smith no seu álbum de versões “Twelve” de 2007, passando pela versão dos anos oitenta do grupo punk The Damned. Usada ainda muitas vezes em bandas sonoras de filmes, nomeadamente, “Platoon” de Oliver Stone em 1986, ou “Fear and Loathing in Las Vegas”, o alucinado filme de Terry Gilliam baseado no romance de Hunter S. Thompson, mas também em alguns episódios de programas televisivos, spots comerciais e referida em livros como “Insomnia” de Stephen King. Acabaria por se tornar um lugar comum da cultura popular e graças à sua fama difundir-se-iam mesmo alguns equívocos e lendas urbanas como o facto discutido e ainda por provar da relação entre o conto de Lewis Carroll e o uso efectivo de drogas alucinogénias pelo seu autor. É provável que houvesse nele referências a práticas correntes na Inglaterra Vitoriana ligadas ao uso do ópio, até mesmo por parte de alguns escritores desse final do século XIX, mas isso não chega para se provar a sua influência psicotrópica na criatividade do professor de matemática e lógica da Universidade de Oxford.


산울림


San Ul Lim, San Ul Rim, Sanulrim ou Sanullim?

O projecto que no dia 8 de Janeiro de 2009 invadiu os tubos de ensaio do Laboratório provém das longínquas paragens da península coreana e tem deixado perplexas as audiências ocidentais que dificilmente conseguem traduzir tanto o seu nome próprio (산울림) como os nomes das faixas constantes nos seus múltiplos álbuns.
Nascidos em 1977, e com uma carreira de mais de três décadas, que apenas terminou no ano passado devido à morte do baterista por acidente de viação, os Sanullim são provavelmente o grupo de rock coreano, ou K-rock para ser mais preciso, que atingiu maior popularidade dentro e fora das fronteiras desse país do extremo oriente.

Fazendo juz às tendências sociológicas dessa parte do globo, os Sanullim eram um empreendimento familiar, já que todos os seus três elementos são irmãos. Kim Chang-wan é o mais velho dos três, é o vocalista, guitarrista e também líder da pandilha, e seguem-se, por ordem de nascimento Kim Chang-hoon, o baixista, e Kim Chang-ik, baterista. Nascidos no seio de uma família abastada de Seul, os irmãos Kim nunca tiveram dificuldades financeiras para fazer face aos custos dos instrumentos musicais necessários ao seu ofício. Quando entrou na universidade, Chang-wan comprou uma guitarra acústica, na qual deu os primeiros passos musicais, compôs as suas primeiras melodias, e ensinou os restantes irmãos a tocar. Mais tarde, quando chegou a vez do caçula da família se candidatar à universidade, os pais prometeram-lhe um piano como presente caso consiguisse entrar. Chang-ik, considerando que o piano é uma coisa muito efeminada e pouco máscula, propõe que em troca lhe seja oferecido uma bateria, uma guitarra eléctrica e outra baixo, e dois amplificadores. Com este material os irmãos Kim iriam compor praticamente todo o repertório de canções dos Sanullim, perto de uma centena em poucos anos de ensaios, mesmo antes do grupo ser baptizado.

Em 1977 participam num popular concurso universitário de bandas, arrebatando o primeiro prémio. Nessa altura chamavam-se A Um-Lee, que significa “não sejas diferente”, e quando o concurso acabou adoptaram a designação final Sanullim, sendo que “san” significa “montanha” e “ullim” pode ser traduzido por eco. Passados poucos meses os “eco da montanha” gravam alguns temas num gravador portátil JVC que submetem à editora SRB, sem no entanto terem qualquer esperança de prosseguir uma carreira musical. Esta brincadeira acabou por lhes sair cara, pois a SBR lançou o primeiro disco intitulado “Ah! Already?”, um registo que arrebatou por completo as audiências coreanas (em parte pela dissonância que provocava com os estilos musicais em voga na altura) e que atingiu ao longo do tempo a notável marca de um milhão de vendas.

Nessa época a Coreia ainda vivia sob um regime ditatorial e apenas dois fenómenos musicais se destacavam na sua estéril paisagem cultural. Por um lado, havia o Group Sounds coreano, que dominava o circuito de concertos organizado para as tropas norte-americanas estacionadas na Coreia, e as sonoridades folk que plantavam raízes em torno do clube Myung-Dong. Quando o primeiro disco de tonalidades psicadélicas e hard-rock dos Sanullim saiu, ninguém foi capaz de encontrar uma categoria onde os catalogar, e dessa forma os irmãos Kim foram promulgados como arautos de um novo som coreano.
Passados quatro meses, os Sanullim lançam o segundo disco “As Laying Carpet on My Mind”, um registo que define e consolida a sua sonoridade idiossincrática, e onde é introduzido o orgão pela mão da irmã Kim Nan-suk.

Atentos ao que se passava no ocidente, os irmãos Kim procuraram transformar o som do seu terceiro disco e torná-lo mais pesado, voltando à fórmula tripartida de guitarra, baixo e bateria. O resultado, apesar de notável, provocou alguma resistência por parte das audiências que acolheram friamente “My Heart”. Para a posteridade ficaria um tour de force de 18 minutos que ocupava todo o lado B do vinil “You’re already me”.
Embora no plano musical global os Sanullim (ou Sanulrim) não sejam pioneiros, a verdade é que criaram um espólio musical notável, recentemente reeditado numa enorme caixa comemorativa de 17 cds intitulada “The Story of Sanullim”. As suas músicas são permeadas por uma das mais belas guitarras fuzz da história, senão mesmo a mais bela, e por variadas experimentações com efeitos primitivos e algumas brincadeiras com a estereofonia, o que lhes valeu o epíteto de psicadélicos. Em meados dos anos 80 a música de dança começou a dominar os gostos coreanos e os Sanullim procuraram reagir lançando uma mão cheia de álbuns com alguns momentos interessantes, esforços insuficientes para travar a correnteza da moda...

Playlist de 8 de Janeiro de 2009:

Sanullim (산울림) - "ANi BeolSseo" ("Already"), retirado de "ANiBeolSseo" ou "Ah! Already?" (아니벌써), 1977
Sanullim (산울림) - "AMa NeutJeun YeoReumIEotSeul GeoYa" ("Perhaps, It Was a Late Summer"), retirado de "ANiBeolSseo" ou "Ah! Already?" (아니벌써), 1977
Sanullim (산울림) - "Nae MaEumE JuDanEul GgalGo" ("Lay Silk on My Heart "), retirado de "NaeMaEumE JuDanEul GgalGo" ou "As Laying Carpet on My Mind" (내 마음에 주단을 깔고) , 1978
Sanullim (산울림) - "NoRae BulLeoYo" ("Let's Sing"), retirado de "NaeMaEumE JuDanEul GgalGo" ou "As Laying Carpet on My Mind" (내 마음에 주단을 깔고), 1978
Sanullim (산울림) - "GeuDaeNeun IMi Na" ("You are Already Me"), retirado de "Nae MaEum" ou "My Heart" (내 마음), 1978

Download do programa em formato podcast aqui.

Acompanhamento audiovisual:


Sanullim "Live 1981-2006", parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5

Mais informação na enciclopédia online, e também aqui e aqui.

Sanullim Mania (em coreano)

What did the dormouse say?

"'But what did the Dormouse say?' one of the jury asked."
"'That I can't remember,' said the Hatter.


Antonin Artaud e o Peyotl

"No México na montanha tomei Peyotl e tive uma porção que deu para estar dois ou três dias com os Tarahumaras, e três dias que achei nessa altura os mais felizes da minha vida.
Deixei de me aborrecer, de procurar razão para viver e já não carregava com o meu corpo.
Compreendi que inventava a vida, minha função e razão de ser, me aborrecia se a imaginação faltava e o Peyotl era capaz de ma dar.
Apareceu um ser e de repente fez o Peyotl sair de mim.
Dei-lhe uma grande sova e sei lá onde é que o cadáver de um homem foi despedaçado e encontrado aos bocados.

rei dá kanká dá kum a kum dá ná kum vonoh

E este mundo uma vez que não é o inverso do outro e menos ainda a sua metade,
de igual modo será este mundo uma real máquina cuja alavanca de comando está em meu poder, verdadeira fábrica que tem por chave o humor-nato.

saná tafã taná tanaf tamafts baí"

[Antonin Artaud, "Uma nota sobre o Peyotl" in Os Tarahumaras, trad. Aníbal Fernandes, Relógio d'Água, 2000]


Esta "Nota sobre o Peyotl" foi escrita por Antonin Artaud em 1947, no momento em que se publicava um outro texto "O Rito do Peyotl entre os Tarahumaras", no âmbito de um projecto editorial que começara em 1937, a propósito de uma viagem ao México, feita no ano anterior, em que Artaud tomara contacto com essa tribo ameríndia e com os seus rituais. O conjunto de textos reunidos sob o simples título "Les Tarahumaras" relata de um modo fascinado e, por vezes, extático, as experiências com essa planta enteógena que os Tarahumaras cultivavam e consumiam, por ocasião das suas festas religiosas tradicionais. Segundo John Forester - nada mais, nada menos que o próprio Artaud - a "vida dos Tarahumaras gira toda ela à volta do rito erótico do Peyotl", pois a "raiz do Peyotl é hermafrodita (...) contém a forma de um sexo de homem e de mulher reunidos". Ainda segundo o escritor francês, os "Tarahumaras não crêem em Deus e a palavra «Deus» nem sequer existe na sua língua; mas prestam culto a um princípio transcendente da Natureza que é Macho e Fêmea como deve ser". Não obstante estas afirmações de Artaud, a verdade é que nos anos trinta, quando ele visitou os índios mexicanos, já os seus ritos sagrados estavam contaminados pela influência cristã que gerava um efeito de mestiçagem na cultura dessa tribo que o governo regional procurava controlar, sobretudo, devido aos excessos cometidos sob o efeito dessa planta psicoactiva, tendo mesmo chegado a destruir plantações de Peyotl. Graças à mediação do próprio Artaud, o qual havia sido enviado pelo Governo francês para uma escola indígena, foi possível retomar um uso controlado do Peyotl nos rituais religiosos, aos quais pôde assistir e neles participar, saindo dessas experiências completamente transformado, como pode ler-se no excerto supra-citado. A impressão foi tal que até à data da sua morte em 1948, Artaud foi escrevendo textos sobre o Peyotl e os Tarahumaras, nomeadamente, a "Danse du Peyotl" e o, já referido, "Le Rite du Peyotl chez les tarahumaras" (que pode escutar-se em francês aqui).

Em 1947, Artaud escreveu um programa de rádio "Pour en finir avec le jugement de Dieu", onde incluíu uma versão do texto "La danse du Tutuguri". Apesar de o programa ter sido imediatamente proibido, devido ao seu carácter escandaloso e revolucionário, as gravações chegaram aos dias de hoje. Existe uma edição de 1996 pela editora belga SubRosa de todo o programa.
Para além disso, em 1970, o compositor francês Pierre Henry é convidado a realizar uma obra radiofónica para o Festival de Arte Contemporânea de Royan que ele realiza em homenagem a Antonin Artaud e predominantemente inspirada nos textos sobre a viagem ao país dos Tarahumaras. Também em 1996, a editora francesa Mantra Records torna pública "Fragments pour Artaud".

Para saber mais sobre Artaud e o Peyotl, um texto de Arnaud Hubert.
Sobre o Peyotl, i. e, a Lophophora williamsii e a sua cultura pelos índios do México, aqui.

Compressed fast-rewind 2008

No primeiro dia de 2009 compilámos alguns momentos dos programas que desde 23 de Outubro têm insistido em incluir cogumelos na ementa dos ouvintes da RUC.

Welcome Cosmic Visitors, 1967 (Hapshash & Osiris posters - retirado sem permissão)