Awake in th red desert


A poesia é uma expiração verbal que segue uma inspiração obscura e transcendente, numa respiração extática em que o poeta parece possuído por uma energia mística, semelhante à da loucura oracular. Neste sentido, o poeta é como um medium cujo corpo é atravessado por vibrações inelutáveis que ele transforma em palavras enigmáticas, mas animadas pelo seu ritmo e grávidas de sentidos por descobrir. bill bissett (segundo a sua vontade escreve-se o seu nome em minúsculas), o poeta canadiano que em 1968 gravou o disco que na passada quinta feira se ouviu no Laboratório Chímico, é assim: um louco oráculo da geração hippie que filtrou as suas vivências trágicas em transes xamânicos e fonéticos, produzindo uma poesia concreta original e idiossincrática, registada, entre outros, no álbum "Awake in th red desert"". O paralelo mais frequente é o poeta americano Allen Ginsberg, com quem foi já comparado por diversas vezes, e cujo ambiente cultural e artístico era nos anos 60 muito semelhante ao que bill bissett viveu na costa oeste do Canadá. Foi, aliás, no contexto de uma comuna de poetas e artistas hippies em Powell River que bill bissett gravou, juntamente com o colectivo artístico, Th Mandan Massacre, este disco composto pela recitação, alquimicamente induzida, dos poemas de bill bissett, acompanhado de improvisações tribais, ao estilo freak out, e por experiências electrónicas com o sintetizador Buchla, entre outras colagens magnéticas e acústicas.



Uma das particularidades do estilo de bill bissett é a delapidação ortográfica e sintáctica do inglês convencional para o tornar mais próximo de uma língua oral e passível de ser cantada poeticamente. Esta disposição fonética da escrita do poeta canadiano torna-a num desafio criptológico para os leitores, mas acrescenta-lhe uma componente estética visual. O que não é de estranhar, tendo em conta que ele é também um pintor cujos quadros de cores estridentes e linhas vibrantes integram as impressões sinestésicas transmitidas pelas suas visões poéticas e pelos seus ritmos pictóricos, sinais, não só de uma inspiração mística, como também das experiências alucinogéneas iniciadas, em Vancouver, no início dos anos 60, na companhia de Martina Clinton. A experimentação com drogas valeu-lhe não apenas uma contaminação estética das suas obras, mas também uma pena de prisão por posse e consumo de marijuana, e ainda, talvez, a maior trip da sua vida quando, após uma sessão de poesia concreta numa tertúlia em Kitsilano, deu uma queda de sete metros que lhe provocou graves lesões cranianas, seguidas de paralisia dos membros, afasia e ataques epilépticos. Uma longa convalescença, depois de uma série de erros médicos, permitiu-lhe reencontrar a sua mobilidade e reaprender a sua língua materna. Uma experiência traumática mas também de redescoberta que parecia já anunciada na sua actividade poética.

Foi, também, com a violência traumática da palavra dilacerada que bill bissett enfrentou os desafios da vigília no deserto vermelho, essa paisagem visionária percorrida pelos seus versos neste disco invulgar e inóspito, mas onde a aridez e a esterilidade desértica se transformam em fecunda imagem poética. O encantamento da sua voz, acompanhada pelos ritmos repetitivos das percussões, cria por vezes a sensação de escutarmos o registo sonoro de um cerimonial ameríndio, o qual gira à volta do seu transe linguístico.

Alguns dos poemas incluídos no disco podem ouvir-se aqui:

My mouths on fire

2 awake in th red desert
She still and curling
Now according to paragraph C

Outros poemas aqui e outras informações aqui e aqui.


Para ver "redboy"(1994) e outros quadros de bill bissett, aqui.

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