A história da música é construída em dois planos. Um plano que se pode considerar “consciente”, povoado por figuras facilmente reconhecidas e reconhecíveis em qualquer canto do globo, e um outro plano, “inconsciente”, habitado por personagens míticas e obscuras, de pesquisa morosa e complicada, mas com frutos bem mais apetitosos, quanto mais não seja pela surpresa que provocam no palato auditivo.
Delia Derbyshire (5 de Maio de 1937 – 3 de Julho de 2001) é precisamente uma das personagens desse panteão, cujo trabalho se encontra ancorado no inconsciente da narrativa musical do século passado, esquecido e relegado para um limbo, onde espera pacientemente ser resgatado para enfim derramar os seus fluídos encantatórios sobre um auditório sedento de iluminação.
Pioneira da síntese electrónica de som, a sua carreira estende-se desde os inícios dos anos 60 até meados da década de 70, altura em que resolve arrumar as botas, ou para ser mais preciso, os aparatos electrónicos que haviam sido a sua companhia durante uma década de frenético ímpeto criativo.
Natural de Coventry, Delia Derbyshire é o espelho de uma Europa renascida das cinzas, intelectual e ambiciosa, atenta aos progressos da modernidade e dotada de um espírito em constante mutação. Em 1959, depois de frequentar a universidade onde estudou matemática, Delia candidata-se a um lugar na Decca Records, obtendo como resposta um rotundo “não”, justificado pela política da empresa de não contratar mulheres para trabalhar nos estúdios. Pouco tempo depois consegue trabalho como gestora de estúdio na BBC, passando a integrar, em 1962, o vanguardista “BBC Radiophonic Workshop”, no qual realizou inúmeras composições electroacústicas, entre as quais se conta a rendição do intemporal genérico da série televisiva Dr. Who, da autoria de Ron Granier.
Durante o período em que trabalhou na BBC, Delia Derbyshire fez de tudo um pouco. Compôs música para interlúdios comerciais e filmes documentais, como por exemplo “Blue Veils and Golden Sands”, uma peça para um documentário sobre as tribos Tuareg, que põe em evidência a capacidade de Delia em transmutar elementos visuais, como os horizontes sem fim do deserto e a névoa provocada pelo calor, em compostos sonoros consonantes. Materializou ideias e conceitos para peças radiofónicas, encetando uma colaboração com o artista e argumentista Barry Bermage, para uma série intitulada “Inventions for Radio”. A primeira das quatro invenções para rádio foi “The Dreams”, uma colagem de descrições de sonhos, em especial os temas mais recorrentes, como estar debaixo de água ou fugir de algo, sob um pano de fundo inteiramente composto por sons gerados electronicamente.
Enquanto elemento do Radiophonic Workshop, Delia conheceu e trabalhou com algumas das personalidades que marcaram e definiram o espírito da época – Brian Jones, Syd Barrett, Paul McCartney, e mesmo Anthony Newley, com quem compôs “Moogies Bloogies”, um clássico da música popular nunca editado, e que apenas foi possível ouvir em 1966 no Unit Delta Plus Concert of Electronic Music.
Estúdio Unit Delta Plus, 1966
Como instituição classicamente britânica e arreigada às tradições, a BBC por vezes suprimia e condicionava o trabalho de Delia, que assim se viu forçada a encontrar outras válvulas de escape para a sua arte. Em conjunto com dois colegas – Peter Zinovieff e Brian Hodgson – cria o Unit Delta Plus, uma companhia independente dedicada à promoção da música electrónica. Mais tarde conhece David Vorhaus e, acompanhados por Hodgson, começam a compor algumas músicas nas horas livres. Rezam as crónicas que Chris Blackwell, da Island Records, ficou de tal modo entusiasmado as melodias do trio que prontamente encomendou um longa duração, avançando a soma de £3000. Dotados de fundo de maneio, Delia e os seus colegas fundam os estúdios Kaleidophon em Camden, onde começam por criar bandas sonoras electrónicas para produções teatrais de MacBeth e Hamlet. Mas é também neste estúdio que o trio, sob a designação de White Noise, grava o grosso de “An Electric Storm” de 1969, um álbum de culto que consegue equilibrar um psicadelismo alegre e vibrante com as arestas mais ásperas do ruído.
O disco, que inicialmente foi um fracasso comercial, em parte porque era impossível reproduzi-lo em concerto, granjeou ao longo do tempo reedições sucessivas e constitui um bom ponto de partida para redescobrir Delia Derbyshire. Os dois lados de “An Electric Storm” complementam-se como o Yin e o Yang da filosofia chinesa. No lado A do vinil encontramos a face mais jovial do grupo, com pequenos apontamentos que vão desde o cómico “Here Come the Fleas” até ao orgiástico “My Game of Loving”. No lado B, o negrume visceral do trio e o seu potencial melodramático são revelados nas duas longas faixas que o compõem. “The Visitations” conta-nos a história de um motociclista que morre num acidente de viação e que procura voltar ao mundo dos vivos para falar com a sua amada, e “The Black Mass: An Electric Storm in Hell” é um delírio percussivo, tornado possível pela presença do baterista Paul Lytton, e inspirado por “A Saucerful of Secrets” dos Pink Floyd.
Delia haveria de regressar ao trabalho no tornear do milénio encorajada por um conjunto de músicos contemporâneos que reconheciam o seu contributo inestimável para o desenvolvimento da música electrónica, como Peter Kember (aka Sonic Boom) dos Spacemen 3 e Experimental Audio Research, ou Drew Mullholland dos Mount Vernon Arts Lab. Infelizmente este regresso seria apenas para um último suspiro, um suspiro que talvez fosse de alívio, por finalmente ver o seu trabalho reconhecido, mas que também poderia ser o produto de um entusiasmo sonolento, como quem acaba de acordar e está pronto para mais uma vez colocar em marcha as intrincadas engrenagens da mente. Em 2001 terminava a odisseia de Delia.
PLAYLIST DO LABORATÓRIO CHIMICO (29 de Janeiro de 2009)
Delia Derbyshire - Ziw-zih Ziw-zih OO-OO-OO (1966?)
"Most of the programs that I did were either in the far distant future, the far distant past or in the mind. I think this was the climax of a science fiction play called "The Prophet". It ended up with all these robots and they sang a song of praise to this bloke, presumably the prophet, and this was the song they sang."
Released on 10" vinyl "Music from The BBC Radiophonic Workshop" by Rephlex as CAT147LP (2003) Released on vinyl "BBC Radiophonic Music" by BBC Records as REC25M (1971 and 19 May 2003) and on CD as REC25MCD (26 November 2002) Russe (a.k.a. Li De la Russe) - Standard Music Library ESL104 (1969)
Released on vinyl as Standard Music Library ESL104 (1969). Released without "London Lemons" on CD and vinyl as "The Tomorrow People: Original television music" (JBH017CD and JBH017LP, Trunk Records, April 2006)
The BBC Radio Scotland Interview (1997)
Interview from 1997 by John Cavanagh of Delia Derbyshire and Drew Mulholland, interspersed with audio tracks of Delia's creation. It was recorded via an ISDN link from Northampton, where Delia lived at the time, and broadcast on BBC Radio Scotland's "Original Masters" series
Delia Derbyshire and Ron Granier - Dr. Who (1963)
"In those days people were so cynical about electronic music and so Doctor Who was my private delight. It proved them all wrong."
Released as a single on Decca: F11837 (1964) Released on "Doctor Who at the Radiophonic Workshop - Volume One: The Early Years (BBC MUSIC, WMSF 6023-2)
Delia Derbyshire - Blue Veils and Golden Sands (1967)
"I tried to convey the distance of the horizon and the heat haze and then there's this very high, slow reedy sound. That indicates the strand of camels seen at a distance, wandering across the desert. That in fact was made from square waves on the valve oscillators we've just talked about, but square waves put though every filter I could possibly find to take out all the bass frequencies and so one just hears the very high frequencies. It had to be something out of this world."
Released on 10" vinyl "Music from The BBC Radiophonic Workshop" by Rephlex as CAT147LP (2003) Released on vinyl "BBC Radiophonic Music" by BBC Records as REC25M (1971 and 19 May 2003) and on CD as REC25MCD (26 November 2002) Released on "Doctor Who Volume 2: New Beginnings"
Delia Derbyshire and Barry Bermage - Running, Invention for Radio No. 1: The Dreams (1964)
Broadcast 5 Jan 1964 on the Third Programme and 21:45-22:45 19 Oct 1993 on BBC Radio 3
Delia Derbyshire and Anthony Newly - Moogies Bloogies (1966?)
"The late Anthony Newley told his label that he wanted to do something electronic. So they got on to me. So I produced this bloopy track and he loved it so much he double-tracked his voice and he used my little tune. The winking knees in the rain, and their mini-skirts. I'd done it as a lovely little innocent love song, because he said to me that the only songs are, "I love you, I love you" or songs saying "you've gone, you've gone."
Delia Derbyshire - The Delian Mode (?)
Released on 10" vinyl "Music from The BBC Radiophonic Workshop" by Rephlex as CAT147LP (2003) Released on vinyl "BBC Radiophonic Music" by BBC Records as REC25M (1971 and 19 May 2003) and on CD as REC25MCD (26 November 2002) Released on "Doctor Who Volume 2: New Beginnings"
White Noise - Love Without Sound (An Electric Storm, 1968)
White Noise - The Visitations (An Electric Storm, 1968)
"I think my forte is, well, apart from having an analytical mind to do electronic sound, at the opposite end I'm very good at writing extended melody for which there was not really an opening at the BBC. And so I met this guy, I was giving a lecture at Morley College in London and he came up to me afterwards. He played the double bass, the same as I did, and he was already doing tracks for the Ballet Rambert and we got together and started this album."
Released on vinyl 1968, Island Records, Cat: 510 948-2. Released on vinyl 1969, Island Records, Cat: ILPS9099. Released on CD, 28 July 1992 by Island Records. Released on CD, 28 Dec 1999 by Polygram Int'l.
Sonic Boom - Rock 'n' Roll Is Killing My Life (Spectrum, 1990)
INTERLIGAÇÕES
Delia Derbyshire: An Audiological Chronology
Delia Derbyshire: Electronic Music Pioneer
Delia Derbyshire: Invenções para Rádio (emissão em formato podcast)