Igor Wakhévitch & Salvador Dali – "Être Dieu" (1974)

Numa tarde de 1927, no Café Regina Victoria, em Madrid, Salvador Dali e o seu amigo Federico Garcia Lorca começaram a escrever o libretto para a maior ópera de todos os tempos e que, como não poderia deixar de ser, oriunda do génio hipertrofiado de Dali, deveria exprimir a magnificência apoteótica do gesto da criação. No entanto, só em 1974 o pintor recuperou a ideia para realizar a sua ópera-poema em seis partes, encomendando ao escritor espanhol Manuel Vasquez Montalban um libretto que deveria ser redigido segundo as suas especificações e atribuindo a Igor Wakhévitch a responsabilidade pela composição musical. Durante a gravação nos estúdios da EMI, o caprichoso Dali resolveu improvisar e não respeitar o que havia sido escrito por Montalban, pois "Dali nunca se repete", argumentava ele, reforçando a originalidade e irrepetitibilidade do acto criador, aliás o tema que estava precisamente em causa nesta ópera ou opus magnum.

Igor Wakhévitch é um compositor francês de origem ucraniana, cujo talento foi desde muito cedo reconhecido não só pelos seus professores, entre os quais Olivier Messiaen, como pelos prémios que ganhou desde a adolescência. Trabalhou no final dos anos 60 com Pierre Schaeffer e Pierre Henry nos estúdios do GRM onde explorou as possibilidades da música concreta. Tal como Henry, criou música para os bailados de Maurice Béjart com quem colaborou numa atmosfera que favoreceu a inclusão da cultura musical psicadélica. Este percurso rico e variado fez com que os seus álbums dos anos 70 exprimissem uma transversalidade de interesses, desde a composição clássica mais tradicional para orquestra até à exploração mais vanguardista da electrónica. A singularidade e qualidade de qualquer das suas obras – Logos (1970), Docteur Faust (1971), Hathor (1974), entre outras – seria suficiente para que merecesse a sua inclusão nestas crónicas. Mas o disco que foi seleccionado para hoje, "Être Dieu", um triplo álbum resultante da colaboração entre o compositor francês e Salvador Dali, o pintor catalão que dispensa apresentações, constitui uma das peças mais delirantes jamais editadas pela EMI. Ser Deus manifesta uma intuição alucinada mas paranóico-crítica dos dados imediatos da inconsciência.
Être Dieu: opéra-poème, audiovisuel et cathare en six parties conta então a história da criação do mundo, no delírio paranóico-crítico de Salvador Dali em que o pintor é o próprio Deus, Brigitte Bardot é uma alcachofra, onde Catarina-a-Grande e Marilyn Monroe fazem um strip tease, mas onde não falta a revolução francesa, os irmãos Max, Mao Tsé Tung, o secretário-geral das Nações Unidas, Gilles de Rais e Joana D'Arc, num desfile paródico dos mitos e obsessões do pintor, do qual este só poderia ser resgatado pelo amor professado à sua esposa e musa inspiradora, Galà. A composição épica de Wakhévitch equilibra magistralmente as experiências psicadélicas e electro-acústicas com a manipulação de fita magnética e a interpretação da Orquestra Sinfónica de Paris, dirigida por Boris de Vinogradow. Delphine Seyrig, actriz conhecida dos filmes de Luís Buñuel, empresta a voz, com Alain Cuny, Catherine Allegret e Raymond Gerôme, a algumas personagens, ao lado da verborreica e quase omnipresente improvisação do excêntrico pintor. Apesar da grandiosidade desta produção, a obra tem estado coberta de uma grande obscuridade à qual não será alheia a sua inacessibilidade, quer pela raridade da sua edição quer pelo preço astronómico dos originais. "...Triste risque que d'être plus que personne..: être dieu." Na impossibilidade de escutar a integralidade da ópera, ouvimos um excerto da abertura. E em fundo escutava-se Le Rêve Passe.

2 comments:

Fashion said...
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