Para além do rock progressivo


Quando falamos de psicadelismo em Itália não falamos apenas de rock progressivo e das suas inúmeras variantes que ali encontraram fértil terreno para se desenvolverem. O país em apreço na edição de 4 de Fevereiro de 2010 do Laboratório Chimico é sinónimo de bandas sonoras de qualidade, particularmente durante os anos 1970 quando os compositores italianos mesclaram psicadelismo com easy-listening, criando um híbrido cuja complexidade procurámos descortinar. Dos nomes mais conhecidos, como Ennio Morricone ou Nino Rota, passando pelos mais obscuros, esta foi a banda sonora escolhida:

Ennio Morricone - "1970" (Ennio Morricone High: The Trippier Side Of The Morricone Genius)
Ennio Morricone - "Mosche di Velluto Grigio" (Psichedelico Jazzistico)
Ennio Morricone - "Plume di Cristallo" (Psichedelico Jazzistico)
Ennio Morricone - "Queimada Seconda" (Delirium Of The Senses: Psychedelia In Italian Cinema)
Nino Rota - "The Awards" (Delirium Of The Senses: Psychedelia In Italian Cinema)
Nino Rota - "Ecclesiastical Fashion Show (Part 1)" (LSD Roma)
Piero Umiliani - "Mah Nà Mah Nà" (Piero's Pleasure: The Touch Of Piero Umiliani)
Piero Umiliani - "L'Archangelo (Suite)" (Piero's Pleasure: The Touch Of Piero Umiliani)
Franco Micalizzi - "M16" (Adolescenza Perversa)
Franco Godi - "Signor Rossi Intro" (Signor Rossi)
Franco Godi - "Parapapa Perepepe" (Signor Rossi)
Piero Piccioni - "Give Love a Chance" (Delirium Of The Senses: Psychedelia In Italian Cinema)
Berto Pisano - "High Altar" (Delirium Of The Senses: Psychedelia In Italian Cinema)
Armando Trovajoli - "Il Filo Dei Giorni"

Os limites do controlo

"When I was 20 I used to spent a lot of time when I first was in New York smoking herb and then playing Fletcher Hendersen and Sidney Bechet records, and then watching out the window how the world would sync to the music, in hilariously perfect ways. You know, it was just a stoner thing, but it was endless amusement to see how a little accent on a high hat would be with some motion of somebody, every little thing synched to something, it was fantastic". Estas palavras , retiradas de uma entrevista de Jim Jarmusch à revista Wire, aplicam-se na perfeição à experiência espectadora de Os Limites do Controlo, o mais recente filme do cineasta e músico norte-americano, e cuja banda-sonora foi o mote para o Laboratorio Chimico da noite de 11 de Fevereiro de 2010.
Ávido consumidor de música, Jim Jarmusch recorre aos seus discos para imaginar mundos e paisagens visuais que depois tenta concretizar nos seus filmes. O próprio teve um papel activo na cena No-Wave nova-iorquina ao integrar os The Del Bizanteens, quando dava os primeiros passos como cineasta independente. Parte da inspiração drone-rock que domina o universo sonoro de Os Limites do Controlo pode ser brevemente vislumbrados já em Flores Quebradas, filme de 2005, que contou na banda-sonora com Dopesmoker, controverso tema dos Sleep, actualmente extintos mas bifurcados nos OM e High on Fire.
Durante o programa trilharam-se caminhos dispersos pelo rock insuflado a drones de Boris, Michio Kurihara, ou Earth, metaforizando a suspensão temporal da narrativa labiríntica do filme, que acompanha a contemplação visual da arquitectura cosmopolita de Madrid, a atmosfera colonial e abafada de Sevilha, ou o deserto de Almeria, tudo isto em toada arrastada, narcótica, quase suporífera, de quando em quando permeada pelo rock negro, também em câmara-lenta, de Black Angels e Bad Rabbit, o trio musical que Jarmusch integra, criado propositadamente para a recriação musical do filme.

Igor Wakhévitch & Salvador Dali – "Être Dieu" (1974)

Numa tarde de 1927, no Café Regina Victoria, em Madrid, Salvador Dali e o seu amigo Federico Garcia Lorca começaram a escrever o libretto para a maior ópera de todos os tempos e que, como não poderia deixar de ser, oriunda do génio hipertrofiado de Dali, deveria exprimir a magnificência apoteótica do gesto da criação. No entanto, só em 1974 o pintor recuperou a ideia para realizar a sua ópera-poema em seis partes, encomendando ao escritor espanhol Manuel Vasquez Montalban um libretto que deveria ser redigido segundo as suas especificações e atribuindo a Igor Wakhévitch a responsabilidade pela composição musical. Durante a gravação nos estúdios da EMI, o caprichoso Dali resolveu improvisar e não respeitar o que havia sido escrito por Montalban, pois "Dali nunca se repete", argumentava ele, reforçando a originalidade e irrepetitibilidade do acto criador, aliás o tema que estava precisamente em causa nesta ópera ou opus magnum.

Igor Wakhévitch é um compositor francês de origem ucraniana, cujo talento foi desde muito cedo reconhecido não só pelos seus professores, entre os quais Olivier Messiaen, como pelos prémios que ganhou desde a adolescência. Trabalhou no final dos anos 60 com Pierre Schaeffer e Pierre Henry nos estúdios do GRM onde explorou as possibilidades da música concreta. Tal como Henry, criou música para os bailados de Maurice Béjart com quem colaborou numa atmosfera que favoreceu a inclusão da cultura musical psicadélica. Este percurso rico e variado fez com que os seus álbums dos anos 70 exprimissem uma transversalidade de interesses, desde a composição clássica mais tradicional para orquestra até à exploração mais vanguardista da electrónica. A singularidade e qualidade de qualquer das suas obras – Logos (1970), Docteur Faust (1971), Hathor (1974), entre outras – seria suficiente para que merecesse a sua inclusão nestas crónicas. Mas o disco que foi seleccionado para hoje, "Être Dieu", um triplo álbum resultante da colaboração entre o compositor francês e Salvador Dali, o pintor catalão que dispensa apresentações, constitui uma das peças mais delirantes jamais editadas pela EMI. Ser Deus manifesta uma intuição alucinada mas paranóico-crítica dos dados imediatos da inconsciência.
Être Dieu: opéra-poème, audiovisuel et cathare en six parties conta então a história da criação do mundo, no delírio paranóico-crítico de Salvador Dali em que o pintor é o próprio Deus, Brigitte Bardot é uma alcachofra, onde Catarina-a-Grande e Marilyn Monroe fazem um strip tease, mas onde não falta a revolução francesa, os irmãos Max, Mao Tsé Tung, o secretário-geral das Nações Unidas, Gilles de Rais e Joana D'Arc, num desfile paródico dos mitos e obsessões do pintor, do qual este só poderia ser resgatado pelo amor professado à sua esposa e musa inspiradora, Galà. A composição épica de Wakhévitch equilibra magistralmente as experiências psicadélicas e electro-acústicas com a manipulação de fita magnética e a interpretação da Orquestra Sinfónica de Paris, dirigida por Boris de Vinogradow. Delphine Seyrig, actriz conhecida dos filmes de Luís Buñuel, empresta a voz, com Alain Cuny, Catherine Allegret e Raymond Gerôme, a algumas personagens, ao lado da verborreica e quase omnipresente improvisação do excêntrico pintor. Apesar da grandiosidade desta produção, a obra tem estado coberta de uma grande obscuridade à qual não será alheia a sua inacessibilidade, quer pela raridade da sua edição quer pelo preço astronómico dos originais. "...Triste risque que d'être plus que personne..: être dieu." Na impossibilidade de escutar a integralidade da ópera, ouvimos um excerto da abertura. E em fundo escutava-se Le Rêve Passe.

Inner Space

Antes de serem os Can (e mesmo The Can) foram Inner Space. Isto depois de cada um dos elementos da formação inicial do dito grupo (Irmin Schmidt, Holger Czuckay, Jaki Liebezeit, David Johnston, Mikael Karoli e depois, esporadicamente, Malcom Mooney) ter tido experiências musicais e artísticas diversas, desde a composição de bandas-sonoras para peças de teatro e documentários, até à escultura, passando pelo jazz ou por grupos blues-rock mais convencionais, ou pelos corredores do ensino musical académico, ou ainda assistindo Karlheinz Stockhausen na produção de algumas peças do referido compositor - e aqui a ordem apresentada não condiz necessariamente com os nomes anteriormente referidos. Algures em 1968 este grupo de indivíduos entreteve-se a compor temas para alguns filmes de série B germânicos, parte deles incluídos em álbuns como Soundtracks ou Delay 1968 (dos Can), em grande medida materializando o fascínio de Irmin Schmidt pela criação de música para cinema - assunto que de resto o senhor retomaria mais tarde na sua discografia, já depois da desintegração dos Can. Por essa altura foram editados dois 7'' com os temas mais emblemáticos das películas, as canções, como se de trailers se tratassem - Agilok & Blubbo / Kamera Song, lançado pela Deutch Vague, e Kamasutra / I'm Hiding My Nightingale, na Metronome. Acontece que em 2009 foram editados dois álbuns creditados ao grupo que o Laboratorio Chimico de 28 de Janeiro de 2010 destacou, compostos por temas da banda-sonora completa de dois filmes, ambos de 1969, Agilok & Blubbo (Wah Wha Records) e Kamasutra: Vollendung der Liebe (Crippled Dick Hot Wax) - neste, com Schmidt a receber louros de creditação -, realizados, respecivamente, por Peter Schneider e Kobi Jaeger.
Estes discos reflectem bem o contexto musical da época, e concretamente as infinitas possibilidades que a relação simbiótica entre entusiastas realizadores independentes e grupos de música experimental proporcionavam e que estes encetaram amiúde. Este contexto potenciava a que narrativas cinematográficas oscilantes e socialmente atentas face a temas emergentes - neste caso, a contemplação erótica-sexual e a sátira político-revolucionária - se cruzassem com a ânsia exploratória de muitos grupos musicais, que por entre fumos e sonhos de liberdade davam largas à criação e contribuiam para que caleidoscópios sinestésicos invadissem ouvintes e espectadores. Parte do interesse das referidas edições reside também no conhecimento do período pré-Can e dos tempos anunciadores do rock alemão que daí a pouco eclodiria para a posteridade como um novo ano zero (?!). Se os trabalhos anteriores de Holger Czuckay no projecto Canaxis denunciavam a curiosidade pelas emergentes possibilidades do estúdio, estes discos mostram-nos que outras idiossincrasias da sonoridade do grupo já por aqui se anunciavam e que o mítico estúdio em Colónia que a banda baptizou de Inner Space não deve o epíteto somente à proclamação da introspecção criativa para a regurgitação de pedras preciosas.

Ouvir.