“Sabor da hora em que o Amado nos pertence, /A sua lembrança é o meu tesouro, /Indagai-o junto daquele sem o qual não passamos. /Tal é a minha bela ocupação, /Sou eu o mestre do vinho, /Cheio de graça, rasgar-me, ó delícia, /Entornar o meu tapete de orações, /Vinho sobre vinho, /Abençoai o meu rumor inebriado, /Pela manhã, ó legítima testemunha, /Ide saber quem eu sou, /Eu que erro até me perder no vinho, /Fazei-me escutar as mais belas melodias. /E não me esforçando por compreender, /Vendi o meu burel, a minha camisa, a minha túnica /E fiquei todo nu, titubeante, /Vacilante, avinhado, eis-me aturdido, /Entorpecido, entre taças e copos que me rodeiam. /A alegria apodera-se dos espíritos, /Não consigo deixar de beber, /Tal é o meu destino, tomai disso conhecimento, /Ó pobres, ó príncipes e guardai o segredo /Quando de novo despertar, ó pobres, /Da minha ebriedade, /Espalhai os vapores do incenso, /E enterrai-me sob a vinha, /Morto e para sempre esquecido, em seu nome, /Enrolai-me na mortalha, /Tal é o meu desejo, filho do cacho, /Fazei das suas filhas o meu sudário, /E a memória da sua aurora me ilumina. /Francamente, cavai a minha cova /Com as flechas da errância perfurai o meu corpo, /Eu amo-o e, com paixão, me ama, /A ele me sacrifico, eu que me esgotei /A cheirar o odor que dele exala, /É ele a alma que anima o meu corpo, /Em mim, os seus eflúvios circulam. /Não nadeis [pois] entre nós: afogar-vos-íeis. /Velai sobre o nosso mar, eu disse que o amo, /Para sempre, e ele também me ama, /Eu sou o seu ocidente, o seu oriente, /Sou eu quem o ilumina, quem ele atinge nos seus desfiles, /É ele, de facto, a própria verdade, /Se vísseis como ele se aproxima /Quando capitulais, à hora da oração, /A nossa união apagou a nossa dualidade, /E assim o meu mistério, o meu segredo se dissipou.”
Abu Madyan foi, no século XII, um dos fundadores do sufismo magrebino e andaluz. Discípulo de Al Ghazali e reconhecido por Ibn Arabi como o “Mestre dos Mestres”, este estudante sevilhano, iniciou-se naquela corrente mística do islão já em solo africano, para se tornar num dos mais importantes sábios e poetas sufi. O poema que se acabou de ler é de um misticismo transgressivo fora do comum, pois ainda que os estados de transe e de desregramento dos sentidos façam parte das práticas sufis, não deixa de ser surpreendente o elogio de uma bebida normalmente proibida pelo islão. Mas a ebriedade bem real do vinho adquire um valor metafórico de hierofania pelo seu contexto religioso e de oração, onde o despojamento de tudo o res
to é fundamental para a entrega total ao divino, a invisível e secreta presença de Deus.
O sufismo é definido precisamente como sendo a ciência cujo objectivo é a ablução espiritual do coração para o desviar de tudo o resto em dedicação exclusiva a Deus. Uma corrente ascética do islão que cultiva o amor e o conhecimento divinos através da oração e de outros rituais que incluem danças e música pelos quais acreditam chegar mais perto da presença de Deus e idealmente entrar em comunhão com Ele. A música que escutamos pertence a uma cerimónia da ordem Mevelevi, uma ordem Sufi nascida naquilo a que hoje chamamos Turquia, à qual pertencem os famosos dervixes rodopiantes. É precisamente na “sema”, vertente musical e coreográfica do “dhirk”, ritual assente na repetição dos nomes de Deus, que vemos os dervixes rodopiarem sobre si mesmos, entrando num transe meditativo que os liberta dos desejos egóicos, ao concentrarem-se na música e nos nomes de Deus, permitindo-lhes assim chegar mais perto de Deus e atingir a “perfeição” (kemal).