Os "Jerks" electrónicos do "Psyché Rock"

“Uma tarde, atravessava Zaratustra um bosque com os seus discípulos, e procurando uma fonte, chegou a um verde prado rodeado de árvores e matagais: ali estavam a bailar umas jovens. Logo que viram Zaratustra deixaram de bailar; mas Zaratustra aproximou-se delas amigavelmente e disse estas palavras:
«Não pareis de bailar, encantadoras meninas! Quem se aproxima de vós não é um obstáculo ao vosso recreio, não é um inimigo das jovens. Sou o advogado de Deus ante o diabo, e o diabo é o espírito da gravidade. Como, ó vaporosas, poderia eu ser inimigo dessas divinas danças ou desses pés juvenis com tão lindos tornozelos? É certo que sou uma selva e uma noite de escuras árvores; mas aquele que não temer a minha obscuridade, encontrará sob os meus ciprestes sendas de rosas. Saberá também encontrar o pequeno deus preferido das donzelas: o que está junto da fonte, silencioso e com os olho cerrados. Adormeceu em pleno dia o folgazão! Andou talvez demasiado ocupado na procura de mariposas? Não vos agasteis comigo, formosas bailarinas, se acaso fustigo um pouco o pequeno deus. Pode ser que ele se ponha a gritar e a chorar; mas até chorando se presta ao riso. E com lágrimas nos olhos vós deveis pedir uma dança; e eu mesmo acompanharei essa dança com uma canção. Uma canção para bailar e uma sátira sobre o espírito da gravidade, sobre o meu soberano diabo, omnipotente, que dizem ser o “dono do mundo”.»



Criado em Agosto de 1967, para o Festival de Avignon, na Corte de Honra do Palácio dos Papas dessa cidade, “Messe pour le temps présent” foi um bailado coreografado por Maurice Béjart com a sua companhia, Ballet du XXème Siècle. Construído como uma “cerimónia em nove episódios” – o Sopro; o Corpo; o Mundo; a Dança; a Parelha, “Mein Kampf”; a Noite; o Silêncio; e, a Espera - para celebrar o tempo nietzscheano que eternamente regressa ou, dito de outro modo, o presente que se repete de cada vez nas suas diferenças, este “espectáculo total” expresso numa linguagem que ultrapassava as convenções da dança e que cruzava a poesia sapiencial bíblica do “Cântico dos Cânticos” com as reflexões sobre o corpo de Siddartha Gautama no “Sattipatthâna Sutra” ou os contos infantis do folclore popular com “O canto da Noite”, retirado de “Assim Falava Zaratustra” de Nietzsche – e com o qual ainda há pouco começámos – foi, na época, um sucesso que muito deveu a uma escuta galante da cultura pop, através da inclusão dos jerks electrónicos de Pierre Henry e dos ritmos psicadélicos de Michel Colombier na sua banda sonora, a qual incluía ainda marchas militares francesas, ragas indianas e música tradicional japonesa.


Os famosos “jerks” consistiam em breves ejaculações electrónicas, carregadas de efeitos sonoros, que aludiam de uma forma estilizada e quase sinestésica ao desregramento dos sentidos que se podia experimentar nos clubes nocturnos ou nos concertos de rock psicadélico dos anos 60. Foram por isso a embalagem sonora ideal para os breves mas intensos temas de Michel Colombier, inspirados pelos sucessos musicais da época – aliás, o mais famoso, “Psyché Rock”, que mais tarde haveria de servir ao genérico da série de animação “Futurama”, era uma versão bastante livre de “Louie Louie”, um hit garage, composto já em 1956 por Richard Berry e tornado célebre a partir de 1963 pelos The Kingsmen. Esses jerks sublinhavam, não só o estilo paródico e referencial da música do bailado, como também os movimentos bruscos e desfragmentados dos bailarinos, que surgiam como manifestações somáticas dos psicotropismos electrónicos da cultura adolescente do momento. Uma cultura que era atravessada, tanto por uma vontade de libertação com uma intensidade destruidora, como por uma necessidade de comunhão e diálogo com modelos alternativos de agir e pensar – daí a evidente tendência orientalizante também presente no espectáculo de Béjart – propostas que reconciliassem os jovens com o mundo e com o seu próprio corpo.

Durante o Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras, ouviu-se:

Dagar Brothers - "Darbari-Kanada" (Music of India vol.5)
The Kingsmen - "Louie Louie" (7")
Pierre Henry & Michel Colombier: Messe Pour le Temps Présent (integral)
- Prologue (1:36)
- Psyché Rock (2:53)
- Jéricho Jerk (2:26)
- Teen Tonic (2:42)
- Too Fortiche (2:56)

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