Temporal Paradox


Anomalias históricas, exercícios nostálgicos, uma forma de capitalizar um nicho de mercado orfão ou, muito simplesmente, o corolário da soma cumulativa da experiência psicadélica, são algumas das possibilidades interpretativas do trabalho de nick nicely, The Dukes Of Stratosphear e The Fraternal Order Of The All durante os anos 80 e 90 do século passado.


Lista de paradoxos temporais abordados no Laboratório Chimico de 13 de Maio de 2010:

Al Kooper & Stephen Stills - "Season Of The Witch" (Super Session)
nick nicely - "DC Dreams" (DCT Dreams)
nick nicely - "49 Cigars" (Hilly Fields)
The Dukes Of Stratosphear - "My Love Explodes" (25 O'Clock)
The Dukes Of Stratosphear - "The Mole From The Ministry" (25 O'Clock)
The Dukes Of Stratosphear - "You're My Drug" (Chips From The Chocolate Fireball)
The Dukes Of Stratosphear - "Brainiac's Daughter" (Psonic Psunspot)
The Fraternal Order Of The All - "Time Is Standing Still" (Greetings From Planet Love)
The Fraternal Order Of The All - "Love Tonight" (Greetings From Planet Love)
nick nicely - "On The Beach" (Psychotropia)
nick nicely - "1923" (Psychotropia)


Entre o espaço sideral e o espaço mental

O cosmos infinito permaneceu, ao longo dos tempos, uma influência maior na criação musical, como pudemos atestar nas duas emissões dedicadas a esta temática. Contudo, com o advento e massificação das substâncias alucinogéneas opera-se uma mudança radical na relação entre ambos. Assim, ao invés de almejar uma viagem por territórios alienígenas através do som, o bombardeamento sensorial operado pelo psicadelismo concretizava-se numa viagem por um outro espaço, igualmente infinito: o espaço mental. O enfoque estilístico altera-se igualmente, com a adopção do rock como língua franca.

A banda sonora foi a seguinte:

Lothar and The Hand People - "Space Hymn" (Space Hymn)
The Tornados - "Telstar" (Telstar/Jungle Fever)
The Blue Men - "I Hear A New World" (I Hear A New World: An Outer Space Music Fantasy By Joe Meek)
The Blue Men - "Magnetic Field" (I Hear A New World: An Outer Space Music Fantasy By Joe Meek)
The Jimi Hendrix Experience - "Third Stone From The Sun" (Are You Experienced)
The Jimi Hendrix Experience - "Exp" (Axis: Bold As Love)
The Jimi Hendrix Experience - "Up From The Skies" (Axis: Bold As Love)
Pink Floyd - "Astronomy Domine" (The Piper At The Gates Of Dawn)
Hawkwind - "Master Of The Universe" (In Search Of Space)

Psychedelic wormhole (2001: A space odyssey) 1968


Um buraco-de-verme (ou wormhole na língua que cunhou o termo pela primeira vez) é uma figura hipotética na topologia do sistema espaço-tempo acerca da qual a física teórica pós-einsteineana tem especulado e de que a ficção-científica se tem servido desde os meados do século XX. Muito grosseiramente, trata-se de um atalho através do espaço e do tempo que ligaria dois lugares distintos e não contíguos numa geometria não-euclideana, como se se tratasse de uma garganta ligando duas bocas abertas sobre dois momentos e locais distintos. Deste modo alimentou as narrativas que imaginaram o encontro ou mesmo a construção artificial desses buracos e a consequente possibilidade de viajar não só no espaço sideral como através do tempo cósmico. Mas, ainda que a concepção deste dispositivo topológico seja matematicamente possível e resolva eficazmente uma série de problemas abertos pela relatividade geral, muitos astrofísicos recusam a possibilidade de viagens no tempo, na medida em que a extrema instabilidade dessas estruturas provocaria a sua extinção no preciso momento em que um objecto entrasse num desses buracos. Não obstante, as actuais experiências no acelerador de partículas do CERN deram azo à especulação sobre uma eventual demonstração experimental da sua existência a uma escala quântica.
Visualmente, porém, a melhor ilustração do fenómeno poderá encontrar-se na sequência que ficou conhecida como “Star Gate”, no filme de 1968 de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço. O astronauta David Bowman, criado incialmente pelo escritor Arthur C. Clarke, ao aproximar-se de um monólito na órbita de Júpiter vê-se absorvido, a uma velocidade superior à da luz, por um túnel multi-colorido que distorce os limites da percepção do espaço e do tempo e o arrasta numa viagem, ao mesmo tempo, maravilhosa e aterradora para uma outra dimensão cósmica e existencial. As magníficas imagens do corredor hiperespacial foram criadas por uma técnica já utilizada por John Whitney em “Catalog” de 1961 e adaptada para o grande formato de 2001 por Douglas Trumbull: a técnica do “slit-scan”, que implica o intercalamento de uma película móvel estrategicamente fendida, entre a câmara, também ela móvel, e o objecto filmado, neste caso painéis de vidro pintado. O resultado final é o de uma trip psicadélica inesquecível que culmina no encontro do astronauta com o seu próprio processo de envelhecimento, numa surrealista câmara mobilada ao estilo Luís XV, e à visão da sua própria morte. O reaparecimento do monólito aos seus pés permite uma transformação redentora de Dave num feto envolvido por uma esfera de luz que entra na órbita do planeta terra, simbolizando eventualmente o novo patamar da inteligência. Tudo isto ressoa às experiências enteogénicas tantas vezes relatadas pelos gurus da cultura dos psicotrópicos alucinogénios e, tendo em conta, a época do filme, reflectiria com certeza as aspirações de uma geração.



A sequência “Star Gate” é acompanhada por uma banda sonora também ela extraordinária e que consiste numa mistura de três obras do compositor húngaro György Ligeti: Requiem para soprano, mezzo-soprano, dois coros mistos e orquestra; Atmosphères, uma obra de 1961 para orquestra completa; e ainda Aventures, de 1962, para 3 vozes e 7 instrumentos, ligeiramente alterada para a banda sonora do filme.

L’Amérique hypnagogique de Baudrillard

“Aproximar outro universo, outro tempo, outro mundo. Receber as imagens de uma utopia estranha que, incessantemente, oscila entre sonho e realidade.” Assim é descrita a experiência da leitura de “L’Amérique” de Jean Baudrillard, na contra-capa da sua edição francesa. E, com efeito, ler este livro é como viajar, através de uma estética do fascínio, da sideração e da alucinação conceptual do semiólogo francês, por uma paisagem heterotópica e hipnagógica da América, simulada, como num mapa inventado por Borges à escala 1:1, pela semiose auto-imune de Baudrillard, onde o referente desaparece por detrás da aglutinação entre o significado e o significante.

É o próprio que se refere à sua experiência deste modo: “A América não é nem um sonho, nem uma realidade, é uma hiperrealidade. É uma hiperrealidade porque é uma utopia que desde o início foi assumida como realizada. Tudo aí é real, pragmático, e tudo nos torna sonhadores. Talvez a verdade da América apenas possa aparecer a um europeu, já que apenas ele encontra aí o simulacro perfeito, o da imanência e da transcrição material de todos os valores. Os americanos, eles, não têm nenhum sentido da simulação. Eles são a sua configuração perfeita, mas não têm a linguagem desta, na medida em que são eles o seu modelo.”
O livro editado em 1986, depois de uma viagem e estadia nos Estados Unidos, parece o registo escrito de um delírio hiper-lúcido, provocado pela sobre-estimulação sensorial e intelectual do sociólogo, exposto a uma visão estranhamente familiar de um país cuja memória antecede e antecipa a sua experiência possível, ao ponto de fazer com que a realidade pareça imitar a sua representação. Contemporâneo do crescimento exponencial da digitalização e mediatização do real, o país surge-lhe, então, assim: “A América é um gigantesco holograma, no sentido em que a informação total está contida em cada um dos seus elementos. Tome-se a mais pequena estação de serviço no deserto, ou uma qualquer rua de uma cidade do Middle West, um parque de estacionamento, uma casa californiana, um Burger King ou um Studebaker, e obtém-se toda a América, a sul, a norte, a este como a oeste. Holográfica no sentido da luz coerente do laser, homogeneidade dos elementos simples conduzidos pelos mesmos feixes. Do ponto de vista visual e também plástico: temos a impressão de que as coisas estão feitas de uma matéria irreal, que elas giram e se deslocam no vazio como por um efeito luminoso especial, uma película que atravessamos sem nos apercebermos.

Com certeza o deserto, mas Las Vegas, a publicidade, e também a actividade das pessoas, public relations, electrónica da vida quotidiana, tudo se recorta com a plasticidade e a simplicidade de um sinal luminoso. O holograma está próximo do fantasma, é um sonho tridimensional, e podemos nele entrar como num sonho. Tudo se prende com a existência do raio luminoso que transporta as coisas; se ele é interrompido, todos os efeitos se dispersam, e também a realidade. Ora, temos bem a impressão que a América é feita de uma comutação fantástica de elementos semelhantes, e que tudo se mantém apenas no fio de um raio luminoso, de um raio laser que conduz sob os nossos olhos a realidade americana. O espectral aqui não é o fantasmal ou a dança dos espectros, é o espectro da dispersão da luz.”

Escrita, assim, no limiar entre uma descrição alucinada de quem ainda não saiu verdadeiramente da “viagem” – real ou sonhada – e a flutuação conceptual de quem já desliza na superfície de uma banda de Moebius feita de néon fluorescente, como o surfista de uma topologia pós-euclidiana, a América de Baudrillard é a perspectiva psicadélica da modernidade instalada no décimo terceiro piso inacabado da pirâmide na nota do dollar americano. Vanishing point…
“Highway” foi o nome da peça de Noah Creshevsky que acompanhou o fundo desta crónica, e “Strategic Defense Initiative” (composta em 1986) a que escutámos logo de seguida. Elas representam aquilo a que o compositor americano chamou de “hiper-realismo musical”, ou seja, “uma linguagem electro-acústica construída com sons encontrados num ambiente partilhado, manipuladas de forma exagerada ou intensa”.