Les Shadoks



Há muito muito tempo, num mundo exclusivamente a duas dimensões, existia o povo dos Shadoks, que vivia no planeta à esquerda do céu, e o dos Gibis, que habitava o planeta da direita. Nenhum desses planetas era porém muito funcional: o planeta Shadok mudava constantemente de forma, provocando a queda acidental de alguns Shadoks no vazio interstelar; o planeta Gibi era chato e desequilibrado, de modo que, se os Gibis se ajuntassem em grande número num dos lados, faziam com que alguns acabassem por cair. No universo geocêntrico dos Shadoks existia no meio do céu um planeta grande e alegadamente vazio, ou seja, a Terra, que era relativamente equidistante dos planetas da esquerda e da direita, e que, ao contrário destes, parecia funcionar bem. Tanto os Shadoks como os Gibis decidiram migrar para a Terra. Mas isso não era fácil. Os Shadoks, apesar de serem pássaros, muito maus e estúpidos, possuíam duas asas ridiculamente minúsculas que não lhes permitiam voar, pelo que, quando tentavam viajar para fora do planeta, acabavam por cair. Os Gibis não possuíam asas, acabando por cair também mas, muito simpáticos e inteligentes, cedo começaram a construir um foguetão que lhes permitiria emigrar. Enquanto, os Gibis usavam da mais recente tecnologia e conseguiam a partir da atmosfera produzir um potente combustível chamado Cosmogol 999, o Professor Shadoko, o mais inteligente cientista dos Shadoks, construiu com coisas e tralhas um foguetão pesadíssimo para o qual não possuía combustível. Habituados a bombear (ZoGa, em shadokiano) por tudo e por nada, os Shadoks foram requisitados em massa para, numa imensa máquina inventada pelo Prof. Shadoko, bombear e assim aspirar o Cosmogol 999 dos Gibis através do espaço para obter o combustível de que necessitavam. A sua natural incompetência e estupidez causaram gargalhadas no planeta e rival e deram aos seus habitantes a oportunidade de gozarem umas férias no campo até eu os Shadoks percebessem que os seus esforços eram vãos…

O primeiro episódio da série de animação Les Shadoks foi emitido na televisão francesa, ORTF, apenas alguns dias antes de rebentar a crise estudantil do Maio de 68 e também ela iria mais tarde dividir os franceses entre shadokófilos e shadokófobos. Criada pelo animador Jacques Rouxel que entrara em 1965 para o departamento de investigação da ORTF e ajudara a desenvolver o “Animographe” de Jean Dejoux que permitiu criar os primeiros episódios, Les Shadoks contava ainda com a sonoplastia de Robert Cohen-Solal, membro do GRM, outra secção daquele departamento da ORTF, onde na década anterior Pierre Schaeffer havia inventado a Música Concreta, também com a voz do narrador Claude Piéplu e com algumas vocalizações bizarras de Jean Cohen-Solal, irmão do autor da banda sonora e um dos digníssimos nomes incluídos na lista de Nurse With Wound. Nascida de tão ilustres investigadores e artistas, a animação respirava o experimentalismo vanguardista, mas também o desconcertante humor surrealista e a lógica patafísica que pareciam fazer ressoar essas experiências de libertação da mente e dos costumes que caracterizaram a cultura dos anos 60. A aparente simplicidade e informalidade do traço dos desenhos e primitivismo da animação escondem, no entanto, níveis escondidos abertos à interpretação geopolítica da série. Parece evidente que os Shadoks simbolizam os franceses e as suas idiossincrasias numa visão auto-crítica e auto-derrisória, enquanto os Gibis, que usam sempre o chapéu de coco – de onde provém a sua inteligência e sanidade mental -, aludem aos ingleses, eternos rivais de Além- Mancha. Mas outras leituras foram feitas que tomavam os desenhos como uma alegoria surreal dos anos cinzentos da Guerra-fria.

Sendo esta uma crónica de rádio, destacámos sobretudo a banda sonora de Cohen-Solal, da qual ouvimos em fundo uma adaptação concertante feita para uma compilação dos arquivos do GRM, dedicada aos sons fabricados nos estúdios da ORTF por Bernard Parmegiani, Luc Ferrari, entre outros nomes, que foram usados em rádio, televisão ou mesmo na sonorização urbana dos transportes públicos franceses.

No comments: