Furthur & the Acid Tests (Ken Kesey & the Merry Pranksters)


Na ontologia dos Shadoks, o insólito povo saído da cabeça de Jacques Rouxel, há autocarros de três tipos: os autocarros que andam pela direita, os autocarros que andam pela esquerda, e os autocarros que não andam nem de uma maneira nem de outra, mas a estes autocarros chamamos caçarolas. Pois há caçarolas com uma pega à direita, caçarolas com uma pega à esquerda e as caçarolas que não têm nenhuma pega, mas a estas chamamos autocarros. Porém quem estiver bem lembrado, saberá que as caçarolas são um tipo de passador, ou seja, um instrumento composto pelo interior, pelo exterior e pelos buracos; mas os buracos não são importantes, pois na verdade – e este é o teorema - a noção de passador é independente da noção de buraco e vice-versa. Logo, o que há a reter é que o autocarro não precisa de buracos para ser um passador nem de nenhuma pega para ser uma caçarola. Pelo que, os autocarros são, então, instrumentos de passagem e de gastronomia, que é como quem diz, laboratório de tranformação e reacção química, mas também, por um efeito de disseminação metonímica e metafórica, lugar de passagem e transformação física, alquímica, metafísica, psíquica, social e, até, poética.



Further ou Furthur foi um desses autocarros que transformou a vida de todos aqueles que aceitaram a sua convocatória e se deixaram seduzir pela superfície policromática da sua chapa metálica exterior e pelo pulsar onírico do seu estofo humano interior. Ken Kesey comprou em 1964, por 1500 dólares, um autocarro escolar da marca International Harvester e com a ajuda de amigos remodelou-o por dentro e por fora e pintou-o com cores e formas psicadélicas, com o propósito de transportar uma excursão psicodrómica através dos Estados Unidos, incluindo o próprio autor de Voando sobre um Ninho de Cucos e a sua trupe, os Merry Pranksters, formada e composta pelo seu melhor amigo, Ken Babbs, pelo poeta beatnick Neal Cassidy, por Hugh Romney mais conhecido como o palhaço activista Wavy Gravy, pelo grupo The Warlocks que nos finais de 1965 se tornariam nos lendários Grateful Dead, pelo jornalista Paul Krassner, pelos cinco escritores que ficaram conhecidos como os Kentucky Fab Five, por Carolyn Garcia ou the Mountain Girl, entre outras e outros ilustres personagens da aventura narrada por Tom Wolfe, em 1968, na sua novela jornalística The Electric Kool-Aid Acid Test. O propósito da viagem era experimental e sociológico e implicava um movimento histórico e geográfico contra-cultural. Se a história dos Estados Unidos tinha acontecido de Este para Oeste, a viagem era agora da Califórnia para Nova York – pois o destino era efectivamente a New York World’s Fair, uma exposição “universal e internacional” sob o lema “Peace through Understanding” – e experimentava os efeitos do encontro entre um grupo de hippies sob o efeito de alucinogéneos e os pacatos habitantes de uma América banal e conformista que eram convidados a experimentar LSD, numa época em que ainda era legal (apenas em Outubro de 1966 a droga seria ilegalizada nos EUA).



As viagens haveriam de repetir-se nos anos seguintes, alternando com festas, na área da Baía de São Francisco que ficaram conhecidas como Acid Tests e que incluíam performances musicais dos Grateful Dead, luzes negras e estroboscópicas, pinturas fluorescentes e muitas trips e happenings induzidos pelo ácido lisérgico, marcando a passagem da Beat Generation para o movimento Hippie.



O som de fundo desta crónica foi precisamente o arquivo sonoro destes Acid Tests gravado pelos Grateful Dead e pelos Merry Pranksters durante esses anos de 1965 a 1967, nomeadamente “Caution do not Step on Tracks”, a primeira faixa do vol.1 destes Acid Test Reels ,“Stage Chaos and More Power Rap”, tal como ainda “Ken Babbs and Harmonica” e a muito lisérgica “Peggy the Pistol”. Ficámos assim muito bem acompanhados nestes minutos finais do Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras, até a um próximo renascimento ou outro avatar… See You later, Alligator!

Dr. Teeth and The Electric Mayhem


Nesta crónica começámos por escutar “Jam” interpretado por Dr. Teeth and The Electric Mayhem, com Dr. Teeth nas teclas e voz, Sgt. Floyd Pepper na guitarra-baixo, Zoot no saxofone, Janice na guitarra principal e, por último, mas não por ser o pior, ou talvez sim, o tresloucado Animal na bateria. Tratava-se, nada mais, nada menos, do que da banda residente do espectáculo televisivo The Muppet Show, criado por Jim Henson em 1974, mas tendo as primeiras ideias para o programa começado a surgir nos finais dos anos 60, ele foi obviamente contaminado pelo movimento contra-cultural e pela música que dele brotou. As figuras da banda são caricaturas felpudas do universo hippie e psicadélico: Sergeant Floyd Pepper é literalmente uma mistura entre a personagem do álbum dos Beatles – está vestido com um uniforme vermelho muito semelhante - e a rosidade electrizante dos Pink Floyd – já que o corpo da marioneta é mesmo feito de pelúcia rosa e outras pilosidades laranja; Janice é a outra guitarrista e também co-vocalista e ressoa obviamente o nome da cantora Janis Joplin; Zoot, o saxofonista de cabelo azul – e o Blues serve eficazmente para traduzir a sua natural melancolia - é de poucas palavras, já que prefere substitui-las por breves notas musicais que sopra por vezes do seu saxofone; Animal é o feroz baterista, possuído constantemente pela energia electrizante do jazz e do rock; e, finalmente, Dr. Teeth, o líder da banda, manipulado pelo próprio Jim Henson, evoca, talvez, a extravagância de músicos como Elton John ou Dr. John, mas todos eles reunidos formam um colorido e histérico agrupamento fiel ao espírito “flower power” e ao slogan “sexo, drogas e rock’n’roll” das bandas da época. No filme The Muppet Movie, de 1979, o grupo viaja num autocarro multicolor denominado The Electric Mayhem Bus, que é uma referência clara ao grupo que orbitava à volta de Ken Kesey, os Merry Pranksters, os quais também viajavam pela América num autocarro escolar pintado com cores psicadélicas para promover a libertação da mente pelo uso de psicotrópicos e cujas aventuras foram registadas no famoso livro de Tom Wolfe, “The Electric Kool-Aid Acid Test”.



O próprio Muppet Show era como uma longa série de momentos de alucinação, onde não faltavam as experimentações musicais e vocais, como na famosa versão do “Mahna Mahna”, de Piero Umiliani, a que já nos referimos em anterior crónica, o momento em que Gonzo rói um pneu de borracha ao som do “Voo do Moscardo”, ou aquele em que se canta “Pensylvania 6-5000” com pífaros ou ainda “Lady of Spain”, interpretado por The Amazing Marvin Suggs e o seu Muppaphone que escutámos no fim da crónica, mas não sem antes darmos atenção a uma outra produção psicadélica de Jim Henson, em colaboração com Raymond Scott. Trata-se de “Limbo: the Organized Mind”, uma criação de 1967 mas que foi transmitida apenas em 1974, no programa The Tonight Show, apresentado por Johnny Carson. Nessa apresentação televisiva via-se um rosto cuja boca e olhos eram manipulados em tempo real por Jim Henson e outros marionetistas, relatando a experiência reflexiva da consciência e a forma como as memórias e outros fenómenos psicológicos – sensações, percepções e emoções - estariam organizados na mente. (Embora a dada altura as coisas não apareçam tão organizadas quanto isso!) Trata-se portanto, no mais explícito sentido, de uma obra psicadélica, na medida em que tenta tornar manifesta a mente do monologante Limbo.



Foi isso que ouvimos de seguida e depois escutámos ainda outras manifestações alucinadas desse fenómeno televisivo que ainda guardamos na memória – pelo menos os que tiveram oportunidade de a ele assistir: os Marretas!

Pink Heffalumps and Disneydelics



“Hey! Tu vês aquilo que eu vejo!?”, pergunta o rato assustado, escondendo-se debaixo do chapéu do seu improvável amigo, um infante elefante de orelhas aladas chamado Dumbo, ao ver no ecrã estrelado do firmamento a reprodução partenogénica de um elefante cor-de-rosa num segundo elefante que lhe nasce da tromba e depois a deste segundo elefante cor-de-rosa num terceiro e, finalmente, num quarto que também surge, como se a bolha de água e champanhe que Dumbo previamente expelira da sua própria tromba fosse um eflúvio líquido da imaginação intoxicada, da alucinação partilhada pelos dois, de uma folie à deux. E os elefantes cor-de-rosa instáveis e volúveis passam por uma série de experiências topológicas que implicam a sua permanente metamorfose, desfilando, como em parada, no céu da noite, tomando as suas trombas por trombetas e por trombones para criar o ritmo de uma marcha, “Look Out! Look Out! / Pink Elephants on Parade / Here they come!...” Eles estão aqui e ali, os elefantes cor-de-rosa estão por todo o lado, cuidado! Cuidado! Eles andam à volta da cama, eles entrelaçam-se numa longa trança de paquidermes, eles replicam-se e mudam de cor, aliás, as cores atravessam-lhes os corpos pneumáticos como raios catódicos, listas e padrões tecnicolores, superfícies lisas, prontas a lamber … O que há-de Dumbo fazer? O que há-de fazer? Que visões tão invulgares! Ele suportaria a visão de vermes, ou a imagem microscópica de germes, mas em Technicolor ver paquidermes… é demais! Eles marcham nas margens do ecrã, enchem o plano da visão e BUM! Dumbo esconde-se por detrás das suas gigantes orelhas, enquanto os elefantes explodem para dar lugar a um número oriental de dança, onde um elefante cor-de-rosa ganha bossas para passar através de duas pirâmides no deserto e outro se deixa encantar pelo ritmo de uma pungi paquidérmica e se transforma em serpente que faz a dança do ventre. E a lua cor-de-rosa é o terceiro olho, aquele que tudo vê e tudo torna clarividente, visão cristalina do espírito e dos sonhos do tímido elefante no circo. Depois de uma sequência electrizante e verdadeiramente psicotrópica, os elefantes descem na abóbada celeste e adormecem como nuvens.


Quem viu esta sequência do filme produzido por Walt Disney em 1941 sobre o elefante Dumbo reconhecerá a sua natureza psicadélica, alegadamente uma das primeiras deste tipo no cinema de animação. Mas quem se lembrar de Fantasia, aliás o filme da Disney do ano anterior, recordará também os momentos de alucinação desenfreada acompanhados ou acompanhando as selecções orquestrais de Leopold Stokowski. Não terá sido um acaso que, depois do fracasso inaugural do filme, a Disney decide relançá-lo em 1969, em plena era psicadélica, já não visando o público infantil mas vendendo como “The Ultimate Experience” para os adolescentes e adultos que muitas vezes se preparavam quimicamente antes de entrar nas salas de cinema para assistir a essa trip de cores e som. De certa forma, o mesmo terá acontecido com a sequência dos elefantes cor-de-rosa de Dumbo, que é recuperada e transformada no filme de 1968 Winnie-The-Pooh onde é directamente referida na sequência do pesadelo do ursinho que vê os seus heffalumps e woozles a dançar e a declinar no espaço hipnagógico da sua imaginação. A tradição psicadélica da Disney tem múltiplos exemplos dos quais o mais famoso já foi aqui noutra crónica aludido e que é o de Alice in Wonderland (o filme de 1951). Talvez por isso, seja forte a presença do imaginário da Disney na cultura das drogas alucinogéneas de múltiplas maneiras e na contra-cultura dos anos 60. (ver Brode, Douglas, From Walt to Woodstock: how Disney created the counterculture, University of Texas Press, Austin, 2004)



A música popular também teve sempre muitas referências a esta promiscuidade entre psicadelismo e o imaginário da Disney. Na crónica emitida escutámos a versão que Sun Ra fez deste “Pink Elephants on Parade”, cujo original escutávamos em fundo numa interpretação dos Sportsmen, e que foi incluída no álbum de tributo à Disney “Stay Awake”, produzido por Hal Willner. De seguida, ouvimos a canção “Heffalumps and Woozles”, composta pelos The Sherman Borthers para o filme “Winnie-The-Pooh”. Depois ouvimos ainda uma canção do músico americano George Olsen, chamada “Pink Elephants” e gravada num disco a 78 rpm, em 1932, anterior ao filme, mas já alusiva às alucinações resultantes da intoxicação alcoólica, antecipando ou inspirando a sequência que deu origem a esta crónica.