Jardins Surrealistas: Estruturas do Inconsciente II

Partindo da Cidade do México em direcção a Tampico e daí até à selvaticamente enclausurada Xilitla, encontramos uma das mais monumentais, excêntricas e improváveis obras surrealistas: Las Pozas, um jardim edificado pelo excêntrico Edward James, eminente patrono do surrealismo, nascido em 1907, no seio de uma família abastada.


Edward James apaixonou-se por este local numa expedição realizada em 1948, em busca do local perfeito para instalar a sua monumental colecção de orquídeas. Reza a lenda que, quando encontraram as piscinas naturais e imponente cascata que congregam um óasis aquático por entre o aglutinador verde das folhagens que caracteriza o local, um amigo de James resolve despir-se e deliciar-se com um banho refrescante. Depois de satisfeito o desejo, deita-se sobre uma rocha para secar ao sol, sendo repentinamente coberto, da cabeça aos pés, por uma nuvem de borboletas azuis. Com uma mente impregnada de misticismo, Edward James toma este singular evento como um inequívoco sinal de origem não identificada, mas credibilidade indubitável, e compra o terreno circundante dando início à sua obra. Este empreendimento dificilmente seria viável noutro país, já que os regulamentos de construção eram praticamente inexistentes, ou facilmente olvidáveis perante o peso dos pesos. Para além disso, e em oposição à austeridade britânica, a permissividade mexicana noutros tipos de regulamentação, particularmente aquela que rege o comportamento social, terá sido outro critério da selecção de James. Começa então a emergir, das profundezas da selva, um delírio megalómano de caprichosas e aparentemente inacabadas estruturas em betão, alimentado pelo suor de 150 operários. De assinalar que, actualmente, são necessários 50 jardineiros para cortar a selva que incessantemente procura devorar o jardim sonhado por James.



Já a escolha de Park Guell para integrar um lote de construções surrealistas parece um anacronismo imperdoável, já que este jardim, património da humanidade pela UNESCO, foi congeminado largos anos antes de Apollinaire ter cunhado o termo surrealismo. Contudo, partimos à conquista do irracional, assumindo uma postura onírica que ignora a linearidade temporal, e nessa senda encontramos no parque de Antoni Gaudi, uma proto-consciência do surrealismo. Desde os sinuosos caminhos que conduzem a parte alguma, às composições em vidro e azulejo que adornam as balaustradas da praça central, passando pela exótica vegetação, não temos dúvidas, ao percorrer este jardim, de estarmos perante uma estrutura do inconsciente.



Playlist de 23 de Setembro de 2010:
Guillaume Apollinaire - "Le Pont Mirabeau"
Guillaume Apollinaire - "Le Voyageur"
Erik Satie - "Parade 1" (Orchestral Works)
The Camarata Contemporary Chamber Group - "Cinq Grimaces" (The Electronic Spirit Of Erik Satie)
George Antheil - "Ballet Mécanique" (Ballet Mécanique)
Robert Desnos - "Description Of A Dream"
Nurse With Wound - "Paranoia In Hi-Fi" (Paranoia In Hi-Fi)

Outlaw Biker Music

Desde muito cedo que as vivências internas dos grupos marginais de motoqueiros, cujo nascimento se pode situar algures na costa oeste dos Estados Unidos no final da década de 1940, e as relações problemáticas que mantinham com as pacatas comunidades suburbanas, foram apropriadas pela indústria cinematográfica, capitalizando o fascínio e temor que a classe média nutria por estes destruidores de civilizações.

O primeiro retrato fílmico - The Wild One - protagonizado por Marlon Brando surgiu logo em 1953, mas a verdadeira eclosão do género "Outlaw Biker Film" ocorreu no seguimento da atenção mediática votada aos míticos Hells Angels, retratados no livro de Hunter S. Thompson, "Hell's Angels: The Strange And Terrible Saga Of The Outlaw Motorcycle Gangs", editado em 1966. Dois anos antes, o grupo feminino The Shangri-las, conhecido pelas suas interpretações de melodramas adolescentes, gravavam "Leader Of The Pack", colhendo sucesso comercial instântaneo. Neste tema conhecemos a história de Betty, uma ingénua adolescente norte-americana que se enamora à primeira vista por Jimmy, cabecilha de um gangue de motoqueiros. Este encontro viria a revelar-se fatal para o rapaz, oriundo do "outro lado da cidade". Enclausurado entre a desaprovação dos pais de Betty e o monstruoso desejo que nutria pela jovem adolescente, tresloucado pelo desespero que o consumia, resolve lançar-se numa fúria motórica pela estrada que a chuva havia tornado demasiado escorregadia...

Kenneth Anger viria a recuperar esta música para a banda sonora de um dos primeiros filmes sobre motoqueiros marginais, o polémico Scorpio Rising, e também Russ Meyer, mestre dos filmes de baixo orçamento mas generosos seios, efectuou uma incursão por este género em 1965 com a película Motorpsycho, na qual encontramos um dos primeiros retratos em cinema de um veterano da guerra do Vietname perturbado.

Contudo, o grande marco inauguratório do "Outlaw Biker Film" foi The Wild Angels de 1966. Realizado por Roger Corman, este filme contava com Peter Fonda no principal papel, sendo assim a primeira associação do actor com a contracultura dos anos 1960, três anos antes de Easy Rider. Em The Wild Angels, para além da violência e do sexo, encontramos outro lugar comum associado aos grupos de motoqueiros: o consumo de substâncias psicotrópicas. Com maior ou menor grau de precisão, poderíamos considerar que o motoqueiro facultava um contraponto óbvio ao hippie. Os dois nada mais seriam que os lados da mesma moeda, o Yin e Yang dos frenéticos anos 1960, uns dedicados à paz e ao amor, os outros ao sexo e à violência, ambos hedonistas e eminentes adeptos da iniciação alucinogénea.

Numerosos filmes surgiram após o recepção calorosa pelo público de The Wild Angels. Hells Angels On Wheels de 1967 contava com um Jack Nicholson em início de carreira e, no mesmo ano, o recentemente falecido Dennis Hopper protagonizava The Glory Stompers. Mais tarde, a união de Fonda, Hopper e Nicholson daria origem ao clássico Easy Rider que, na realidade, é a antítese do "Outlaw Biker Film". Em Easy Rider, ao invés de serem explorados os receios da populaça através da atribuição de caracteres diabólicos ao motoqueiro, são elencadas uma série de questões e tensões sociais que assolavam a sociedade americana, tais como a queda do movimento hippie, o estilo de vida comunal, o consumo de drogas e, sobretudo, o preconceito das em relação à condição de motoqueiro que uma década de "Outlaw Biker Films" ajudou a cimentar.

Laboratório Chimico, 26 de Agosto de 2010

Foram recuperados numerosos temas das bandas sonoras de Motorpsycho, The Wild Angels, Naked Angels, Easy Rider. Para além disso foi possível escutar "Leader Of The Pack" retirado da compilação "Myrmidons Of Melodrama" das The Shangri-las, e o novo albúm dos Acid Eater, apropriadamente intitulado "Black Fuzz On Wheels".

Estruturas do Inconsciente

Salvador Dali - "Surrealist Architecture" (1932)

Materialização do inconsciente em estruturas concretas para usufruto quotidiano, a arquitectura surrealista afigura-se, à partida, um empreendimento impossível devido à diferença entre as leis físicas, que regem o mundo objectivo, e as leis mentais, que regem o mundo subjectivo. Contudo, a fértil imaginação e sublime engenho de um conjunto restrito de indivíduos, permitiu a edificação de verdadeiras homenagens ao reino dos sonhos, as quais servirão de guião para algumas emissões.
No dia 9 de Setembro de 2010, o Laboratório Chimico debruçou-se sobre dois exemplares desta arte, ambos situados em França: o "Palais Idéal" de Ferdinand Cheval e a "Maison de Poupées".

Começamos pelo "Palais Idéal", situado a sul de Lyon, na localidade de Hauterives. Este "Travail d'un seul homme" (como se pode ler numa das inscrições que adornam o edifício), constitui uma prova inequívoca da possibilidade do impossível quando confrontado com um espiríto persistente e hiper-criativo. Homem de poucos estudos e origens modestas, nascido em 1836 e carteiro de profissão, Ferdinand Cheval iniciou esta grandiosa obra em Abril de 1879, para apenas terminar 33 anos mais tarde. Recorda as suas rondas de entrega do correio, prévias ao início dos labores, como fulcrais para exercitar o seu imaginário: "What else is there to do when one is constantly walking in the same setting, apart from dreaming? To fill my thoughts, I built in my dreams a magical palace…". O pretexto para passar do onirismo à acção, aconteceu precisamente numa dessas rondas, ao tropeçar numa pedra que o impressionou pela forma e feitio. Esta foi a primeira de milhares de pedras que diligentemente começou a recolher diariamente, e que à noite, sob a ténue luz de um candeeiro a óleo, incorporava no seu palácio fantástico.


Le Palais Idéal


A descrição por palavras das intricassias infinitamente complexas decorrentes do meticuloso arranjo das pedras, invocando mútiplas mitologias e criaturas fantásticas numa amálgama unicamente possível em sonhos mirabolantes, revelar-se-ia sempre incompleta, por muitos pormenores que contivesse. Não será assim de estranhar que, pouco tempo antes da sua morte, o facteur Cheval visse o seu trabalho ser reconhecido por personagens proeminentes do surrrealismo, como André Breton e Max Ernst (que inclusivamente criou uma colagem intitulada "The Postman Cheval"). Tal reconhecimento culminaria em 1969, quando o Ministro da Cultura André Malraux declarou o "Palais Idéal" como marco cultural e património nacional.


Max Ernst - "The Postman Cheval" (1932)

A informação disponível sobre a "Maison de Poupées" é bem mais escassa. Com efeito, sobre este curioso edifício apenas dispomos dos dados contidos num pequeno artigo publicado no terceiro volume da "Strange Attractor" de 2006, da autoria de Robert Ansell, co-fundador e director artístico da Fulgur Limited, uma editora especializada em esoterismo contemporâneo. As coordenadas da sua localização são desconhecidas e as fotografias mostram uma singela casa de campo, sobre a qual uma mente irrequieta, certamente imbuída daquele humor negro que André Breton falava, foi obsessivamente acumulando bonecas de plástico, brinquedos variados, duendes de jardim e outros que tais. O efeito produzido é semelhante ao eclodir da floração nas imensas roseiras da Rosarie du Val-de-Marne à l'Haÿ-les-Roses, mas, ao invés de flores multicolores, das paredes deste casebre no sul de França, brotaram milhentos resquícios de sonhos infantis olvidados. Aqui fica um excerto do artigo:

"Deep in the heart of southern France, amid the lavender, lemon groves and cicadas, rests an extraordinary house (...) reaching the far entrance, the visitor finds a vast graveyard of giant stuffed toys. Sagging and mould-ridden, astride slides, bicycles and plastic play equipment, it is not hard to imagine they were perhaps once enjoying a child's party. Then, in a surreal Pompeian tragedy, adulthood erupted and rained upon the eldricht scene, freezing it for eternity (...) It is as if Hans Bellmer and Joseph Ferdinand Cheval had collaborated under the direction of Breton himself to create a mysterious, mocking, menagerie. Raw and flawed, la maison de poupées is a rare jewel indeed".

A escolha da banda sonora obedeceu ao mote "música surrealista para uma arquitectura surrealista":

Nurse With Wound - "June 9" (Shipwreck Radio Volume Two: Eight Enigmatic Episodes From Utvaer)
Andrew Liles - "Come And See" (All Closed Doors)
Andrew Liles - "An Eternal Quest" (All Closed Doors)
Salvador Dalí & Igor Wakhévitch - "Troisième Entrée Et Première Sortie" (Être Dieu: Opéra-poème, Audiovisuel et Cathare en Six Parties)
Edgar Varèse - "Density 21.5" (Complete Works Of Edgar Varèse: Volume 1)
Andrew Liles & Jean-Hervé Péron - "The Drummer Is On Valium" (Fini!)