Acid Soul




O Laboratorio Chimico de 17 de Dezembro foi dedicado à soul psicadélica. Se é verdade que no imaginário da música popular a soul music repousa aparentemente resguardada dos devaneios psicotrópicos de outros congéneres, não é menos verdade que paralelismos com o psicadelismo podem ser vislumbrados, na busca encetada por ambos rumo à transcendência, libertação, ou simplesmente, a uma atitude escapista.
A utilização de electrónica no contexto da popularização, na década de 60, do acesso a técnicas de manipulação de estúdio e a material inovador - os sintetizadores Moog, por exemplo - foi um dos aspectos presentes na génese da soul psicadélica. Particularmente, a fusão do vocabulário do rock psicadélico - feedback, a electricidade do fuzz, reverb e wha-wha das guitarras, e os teclados - com a contemplação humanista e celebratória da soul, em muitos casos já com uma aguçada capacidade de imersão nas consciências quimicamente alteradas da segunda metade da década de 60, terá sido o que de forma mais clara possibilitou o cunho psicadélico da soul. Grupos como Sly & The Family Stone ou The Parliaments / Parliament (mais tarde os Funkadelic) terão sido alguns dos mais ilustres representantes da soul que provou e abusou de poções lisérgicas emanadas de guitarras, ambos apropriadamente adornados de exuberantes vestimentas.
Mas o catalisador deste movimento terá sido um tal de James Hendrix, que chamou a atenção de Ronald Isley (líder dos The Isley Brothers) enquanto explorava a sua guitarra num bar de hotel, no Harlem. Ao integrar Hendrix no grupo, os The Isley Brothers conceberam a soul music insuflada de electricidade flamejante da guitarra amplificada a fumo de marijuana.
Tal filão foi vislumbrado pelo lendário produtor/compositor da Motown, Norman Whitfield, que escutou o futuro nos delírios de Sly Stone e de George Clinton. Whitfield adoptou e reconfigurou as coordenadas das sinergias da soul e do rock psicadélico em muitos dos seus trabalhos de produção (casos de The Tempations, The Debonaires ou Rare Earth), dando contributo decisivo para que a paleta sonora da soul music se expandisse até territórios até então nunca antes trilhados. Um outro exemplo visionário foi o de Charles Stepney, que produziu o disco inaugural dos Rotary Connection, no qual, valendo-se da sua educação musical formal e do gosto pelas composições de Georgy Ligeti e Henry Cowell, criou intrincadas camadas de uma produção saturada com laivos de atonalidade, arranjos pouco convencionais e uma cítara electrificada, que forneceram, também, o substrato psicadélico para a expansão da alma.

Durante o programa escutou-se:
Swamp Dogg - Synthetic World (Total Destruction to Your Mind)
The Isley Brothers - Move Over and Let Me Dance (In The Begining)
The Isley Brothers - Wild Little Tiger (In The Begining)
Sly & The Family Stone - Dance to the Music (Dance to the Music)
The Parliaments - (I Wanna) Testify (7")
The Parliaments - Red Hor Mamma (Osmium)
The Tempations - Psychedelic Shack (Psychedelic Soul)
The Debonaires
- I Want To Talk About It (World) (7")
Rotary Connection - Turn Me On (Rotary Connection)
Rotary Connection - Memory Band - (Rotary Connection)
Rasputin Stash - Hit it and Pass it (Devil Made Me Do It)
Rare Earth - I Know I'm Lossing You (7")
Barbara & Ernie - Somebody to Love (Prelude to...)

Ouvir.

Peyote Queen de Storm de Hirsch


Para download ou visualização através do UBUWEB

The Sound Of The Sitar




George Harrison, a quem são atribuídas as honras de introduzir a sitar na música popular ocidental, mais precisamente no tema "Norwegian Wood (This Bird Has Flown)" do álbum "Rubber Soul", deparou-se pela primeira vez com este bizarro artefacto do distante oriente no cenário do filme "Help". O seu fascínio rapidamente se intensificou ao ponto de solicitar aulas junto do grande mestre Ravi Shankar, um dos mais conhecidos e reconhecidos praticantes da sitar que, depois de terminar os seus estudos com o músico Allauddin Khan em 1944 e resignar ao posto de director musical da All India Radio de Nova Deli, encetou uma peregrinação pelas Europas e Américas, levando aos ouvidos ocidentais as intricassias melódicas e as idiossincrassias instrumentais da música clássica indiana.

O choque de culturas, concretizado no encontro dos dois músicos em 1966, verteu ondas de impacto que se espraiaram em todas as direcções. A popularidade de Shankar aumentou exponecialmente, chegando inclusivamente a actuar no mítico festival de Woodstock, e as experiências de fusão realizadas por Harrison facultaram um impulso indispensável ao estabelecimento do "Raga Rock", uma designação habitualmente utilizada para descrever álbuns rock com forte influência sul-asiática. O advento deste estilo musical é comummente traçado ao lançamento do single "See My Friends" dos The Kinks em Julho de 1965, sendo que a segunda grande referência cabe aos The Byrds e a "Eight Miles High", editado em Março de 1966.

Na segunda metade dos anos 1960, a moda da sitar cresceu a tal ponto que, em 1967, a Coral Instrument Company decide lançar no mercado a primeira sitar eléctrica, a "Coral Electric Sitar", que se tratava, no fundo, de uma guitarra eléctrica desenhada por forma a mimetizar o som do instrumento tradicional indiano. A sitar original, essa acredita-se ter sido desenvolvida no séc. XIII e insere-se na família dos alaúdes, possuindo um longo pescoço que entroca numa câmara de resonância em forma de cabaça.

A introdução da sitar na música popular em geral, e na psicadélica em particular, pode ser considerada uma manifestação de orientalismo, uma espécie de reedição do movimento original do séc. XIX de fascínio por tudo o que é distante e exótico, traduzindo um ensejo onírico por um Éden perdido, situado muito para além do alcance do comum dos mortais (ocidentais, claro). Apesar de, eventualmente, se tratar apenas de um sonho, não deixa de ser um sonho agradável de ser sonhado e escutado.

Laboratório Chimico, Playlist 10 de Dezembro de 2009:
The Dave Pike Set - "Mathar" (Electric Psychedelic Sitar Headswirlers Vol. 9)
The Beatles - "Norwegian Wood (This Bird Has Flown)" (Rubber Soul)
Ravi Shankar - "Raga Malkauns (Alap)" (Sound Of The Sitar)
Ravi Shankar - "Raga Puriya - Dhanashri/Gat In Sawarital (11 Beats)" (At The Woodstock Festival)
The Kinks - "See My Friend" (You Really Got Me: The Very Best Of The Kinks))
The Byrds - "Eight Miles High" (Fifth Dimension)
The Chemical Brothers - "Setting Sun" (Dig Your Own Hole)
The Rolling Stones - "Paint It, Black" (Aftermath)
Jimi Hendrix - "My Little One" (Axis Outtakes)
Wolfgang Dauner Quintet - "Take Of Your Clothes To Feel The Setting Sun" (Electric Psychedelic Headswirlers Vol. 7)
The Chemical Brothers - "The Private Psychedelic Reel" (Dig Your Own Hole)

Kosmische Musik I


As palavras de Erik Davis na introdução do seu ensaio "Kosmische", no recente
Krautrock: Cosmic Rock and its Legacy (Black Dog Publishing), e aqui deixadas, deram o mote para dois programas dedicados à Kosmische Musik, capítulo crucial da música progressiva psicadélica germânica da primeira metade da década de 70.

Neste primeiro programa ouviu-se:

Tangerine Dream - Cold Smoke (Electronic Meditation)
Klaus Schulze - Conphära (Cyborg)
Cosmic Jokers - Kinder des Alls III (Cosmic Jokers)
Walter Wegmüller - Die Herrscherin (Tarot)
Sergius Golowin - Die Hoch Zeit ( Lord Krishna von Goloka)
Cozmic Corridors - The Summit (st)
Popol Vuh - Vuh (In Der Gärten Pharaos)
O Pulsar Ciclotímico do Amola-Tesouras
(Crónica de Nuno Fonseca sobre "Mandalas", dos Limbus 4)

Limbus 4 – “Mandalas” (1970)

Mandala é a palavra sânscrita que significa círculo e, por extensão semântica, esfera, envolvência, comunidade. Mas, no contexto religioso, refere-se a uma representação geométrica que exprime a relação do homem com o cosmos ou de uma divindade com o que a envolve. O processo de construção de uma mandala é uma forma de meditação constante que acompanha movimentos meticulosos e muito lentos, numa experiência ao mesmo tempo religiosa e criativa. Feitas normalmente com areia ou giz, as mandalas apresentam-se muito coloridas e são, por fim, ritualmente destruídas. Foi todo este conceito que inspirou o projecto alemão, Limbus 4, na elaboração do álbum “Mandalas”, editado em 1970, pela lendária Ohr Records. A inspiração etno-religiosa é aliás notória no nome das faixas e traduz-se ainda etnomusicalmente na escolha dos instrumentos usados: para além dos instrumentos ocidentais – violoncelo, baixo, órgão e viola – as flautas transversais, as tablas, e os bem mais exóticos totalophone, tsikadraha, kazoo ou o valiha faray. Sendo, no entanto, uma interpretação alemã da música cósmica, nos anos 70, não é de admirar que aquelas sonoridades apareçam filtradas pelo uso de alguma electrónica e pelo experimentalismo vanguardista da época.
O projecto Limbus havia começado em 1968, na cidade de Heidelberg, procurando fundir, de um modo singular, o jazz, o folk e o espírito de experimentação musical. Um primeiro disco havia sido editado, enquanto eram um trio acústico, os Limbus 3, que também figuram nesta Lista, com o nome New-Atlantis, em 1969. No ano seguinte, passam para Limbus 4, por se terem tornado para este álbum - “Mandalas”-, num quarteto, constituído por Odysseus Artner, Bernd Henninger, Matthias Knieper (o elemento adicional do grupo) e Gerd Kraus. Músicos dos quais muito pouco se sabe, excepto do último que nos anos mais recentes terá pertencido a um bizarro projecto de nome www.knagg.nett e aos Metalimbus. O próprio nome Limbus refere-se a um grupo étnico do Nepal, o que reforça o carácter orientalizante deste projecto. Não sabemos, porém, se foi apenas o fascínio da filosofia e religião orientais que determinaram esta atracção cósmica e musical dos Limbus ou se o factor enteogénico teve a sua parte de responsabilidade.
O disco é assimetricamente dividido em três faixas no lado A e apenas uma longa faixa no lado B. “Dhyana” é outra palavra de origem sânscrita que designa um estado de meditação nas tradições Hindú e Budista, equivalente ao Zen japonês, por exemplo. É este estado que visa o auto-conhecimento que determina o transe musical desta primeira faixa do disco, onde a entoação do famoso ohm parece a princípio dobrar o órgão monódico e é depois progressivamente engolido pelo caos improvisado dos instrumentos de cordas, da percussão e dos sopros. “Kundalini” é a energia cósmica que jaz adormecida ou “enrolada como uma cobra” no Muladhará Chakra, um centro de força localizado junto do sacro e dos órgãos genitais. Ela precisa de ser despertada e conduzida pela meditação, ao longo da coluna vertebral e dos vários chakras, como parece ser traduzido musicalmente nesta segunda faixa do disco. A terceira faixa parece ser um curto “haiku” construído a partir da experiência de improvisação que estes músicos aprenderam no free-jazz. Finalmente, e ocupando todo o lado B, “Plasma” é um longo exercício de exploração das virtualidades de comunicação entre as sonoridades orientais e as experiências da música contemporânea, transferindo assim a retrogradabilidade rítmica e a microtonalidade típicas da música indiana para o contexto ocidental. Fiquemos com “Haiku” e depois “Plasma”. Em fundo, ouvia-se “Dhyana”.

Ouvir.